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Os crimes de Stalin teriam sido justificados se tivessem produzido a Revolução Mundial.
Eric Hobsbawm
Quando Joachim von Ribbentrop aterrou no aeroporto de Moscovo engalanado com cruzes suásticas, a 23 de Agosto de 1939, houve quem tivesse percebido que tinha sido criada uma nova realidade geopolítica. A revista Time chamou-lhe "O Pacto comunazi", e repetiu-o durante quase dois anos, até que pelo Verão de 1941, a traição de Hitler ao seu parceiro soviético tornou o assunto nulo. Depois, a partir de Dezembro desse ano, Stalin passou a ser "...o nosso filho da puta..." e a narrativa da memória da Europa durante os cinquenta anos seguintes ficou traçada, nos seus contornos gerais. Nessa narrativa já não havia lugar para aquela realidade, nem, em boa medida, para as centenas de milhões de seres humanos que seriam marcados por ela. Entre esses milhões, um chamava-se Chiune Sempo Sugihara; outro chamava-se Andrey Sheptytsky.


Foi naquela Europa de Molotov-Ribbentrop — o mapa acima diz respeito ao acordo final — que ocorreram a vasta maioria dos assassínios em massa, antes, durante e após a 2ª Guerra; de 1933 a 1950. Foi naquela faixa que vai desde o Báltico até ao Mar Negro que os nazis fuzilaram, mataram pela fome e gasearam as suas vítimas; foi ali que os soviéticos mataram pela fome, fuzilaram, violaram e deportaram as suas. Foi ali que as populações civis foram sujeitas a duas, na maior parte, a três ocupações sucessivas. Foi ali que soviéticos e nazis efectuaram as suas paradas militares de vitória, três pelo menos, em Brest, Lublin e Lvow (hoje Lviv).

Hoje, mais de vinte anos após a abertura dos arquivos de Leste, a narrativa bastarda do "nosso filho da puta" começa, finalmente a esboroar-se, sem deixar de persistir em muitos aspectos da nossa mente colectiva. Em meados da década passada, um grupo de artistas plásticos austríacos lançou uma campanha com o propósito de chamar a atenção para o crescimento do movimento de extrema-direita do sr. Georg Haider. O símbolo dessa campanha era uma suástica amarrotada e rasgada. Foram acusados e condenados ao abrigo da lei austríaca que proíbe terminantemente a utilização dos símbolos nazis, mesmo que o propósito seja o de os denegrir. Não passa pela cabeça de ninguém que o símbolo da foice e do martelo tenha o mesmo tratamento.

E muito bem. Nem uma dos milhões de vítimas do nazismo foi atingida por uma cruz gamada: foram fuziladas, mortas à fome e gaseadas; nem uma dos milhões de vítimas do estalinismo foram golpeadas com uma foice e um martelo: foram fuziladas, mortas à fome, violadas e deportadas de territórios onde elas e os seus antepassados tinham vivido durante séculos. Os símbolos esgotam-se no seu propósito simbólico. Todos aqueles milhões de vítimas tinham um nome. Quando hoje, e não é por acaso, alguns tentam reduzir o movimento popular ucraniano aos símbolos usados por alguns movimentos nacionalistas, estão apenas a reproduzir exactamente o mesmo processo de desumanização a que aqueles milhões de vítimas foram sujeitas; estão a dar o primeiro passo naquilo a que Hannah Arendt chamou "A construção do homem supérfluo". Hoje, como então, nenhum nome é citado. Apenas símbolos.


Mas de entre as vítimas, recordamos sobretudo os sobreviventes e aqueles que com eles se cruzaram. Chiune Sugihara foi um diplomata de carreira, como indica a página do Yad Vashem, mas foi mais do que isso. Sugihara foi um espião, treinado na Academia de Harbin, na Manchúria ocupada. Convertido à Igreja Ortodoxa russa, casou com uma mulher russa e tornou-se um especialista nas complexas relações entre o Império do Japão e a União Soviética. O pacto Molotov-Ribbentrop teve consequências imediatas no Extremo-Oriente. Tornava automaticamente nulo o pacto Anti-Komintern, o que permitiu que o exército vermelho atacasse os japoneses em Khalkin Gol, sem que Stalin tivesse que temer uma segunda frente na Europa. O governo japonês caiu, como aconteceria com vários outros nos meses seguintes. Tóquio estabeleceu um consulado em Kaunas, na Lituânia, e o russo-falante Sughiara foi lá colocado, com a missão de observar o desenvolvimento das movimentações alemãs e soviéticas. Sem uma equipa própria, usava oficiais polacos como informadores e assistentes e recompensava-os com passaportes japoneses e acesso ao correio diplomático japonês. Muitos, tinham-se apercebido que era possível fazer a viagem através da União Soviética. A partir de meados de 1940, Sugihara começou também a emitir centenas de vistos a judeus. A diferença é que estes últimos tentavam atingir o Japão, e a partir daí, os Estados Unidos por mar; os polacos preferiam a fronteira do Irão, para depois se juntarem ao Exército Polaco do Exterior. Alguns estiveram em Mont Ormel; alguns foram entregues pelos britânicos ao governo fantoche de Lublin. Sugihara afirmou, nos seus relatórios, que a Alemanha atacaria a leste em Junho de 1941. Enganou-se num mês.

Andrey Sheptytsky era o Metropolita da Igreja Católica Grega ucraniana. Acolheu os alemães como libertadores (a Ucrânia ocidental fazia parte da Polónia até ao Pacto Molotov-Ribbentrop e foi ocupada pelos soviéticos depois disso), mas muito cedo começou a criticar a sua actuação. Escreveu uma carta irada a Himmler, instando-o a não usar a polícia ucraniana na perseguição aos judeus e emitiu cartas pastorais instruindo os seus fiéis a protegerem os seus vizinhos judeus. Com o auxílio do irmão, Kliment, salvou muitos judeus. Em 1943, enviou capelães para acompanharem a divisão Whaffen-SS "Galícia".

Eric Hobsbawm foi um dos maiores historiadores do século XX. Perpétuo embaraço para a Academia Soviética das Ciências, recusou-se sempre a aceitar qualquer "linha oficial", ou a pensar sem ser pela sua própria cabeça, sem nunca por em causa o marxismo. Pela sua profissão, pela vastidão do seu conhecimento e pela postura de independência que foi sempre a sua, duma coisa podemos ter a certeza: foi pela sua própria cabeça que Hobsbawm chegou àquela conclusão monstruosa.

Estas três personagens não são comparáveis. Sugihara era o agente duma potência agressiva, ela também assassina. Apesar disso, quando as circunstâncias o colocaram perante a escolha, optou por salvar seres humanos. Sheptytsky era um aristocrata de casta militar, que via na ocupação alemã a oportunidade de concretizar uma oposição militar à próxima ocupação soviética, que se adivinhava. Apesar disso, optou por salvar seres humanos. Hobsbawm era um esteta.

Heidegger era um filósofo e apoiou os nazis. Não lhe ligaram, porque não precisavam de filósofos para nada: o nazismo era, sobretudo e acima de tudo, um discurso estético. Seja lá o que for, tem que existir alguma beleza naquela ideia de "Revolução Mundial" que justifique o sofrimento e o sangue de milhões. A única coisa que não pode existir em ambos os casos é o Ser Humano. Apenas o Horror.

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publicado às 16:39


Dies irae

por Licínio Nunes, em 26.03.14
N.B.: O que se segue pode ser insuportável. Eu sei!
As crianças que nasciam na Ucrânia no final dos anos de 1920 e no início dos anos de 1930 viam-se num mundo de morte, entre pais impotentes e autoridades hostis. Um rapaz nascido em 1933 tinha uma esperança de vida de sete anos. Mesmo em tais circunstâncias, algumas das crianças mais jovens conseguiam mostrar alguma alegria. Hanna Sobolewska, que perdera o pai e cinco irmãos e irmãs por causa da fome, recordava a dolorosa esperança do irmão mais novo, Jósef. Ao mesmo tempo que inchava devido à fome, não deixava de encontrar sinais de vida. Certo dia tivera a certeza de ver culturas que se erguiam do chão; noutro julgara ter encontrado cogumelos. «Agora viveremos!», exclamava, e repetia aquelas mesmas palavras antes de ir dormir, todas as noites. Depois, certa manhã, acordou e disse: «Tudo morre.»

Timothy Snyder — Bloodlands


Depressa estas situações deixaram de ser dignas de nota. Na escola de Yurii Lysenko, de oito anos, na região de Kharkiv, uma rapariga caiu, simplesmente, durante uma aula, como se tivesse adormecido. Os adultos correram para ela, mas Yurii sabia que não havia esperança, «que ela tinha morrido e que eles a iam enterrar no cemitério, como tinham enterrado outras pessoas no dia anterior e no dia antes desse e em todos os dias». Os rapazes de uma outra escola encontraram a cabeça decepada de um colega de turma enquanto pescavam num lago. Toda a família tinha morrido. Tê-lo-iam comido primeiro? Ou teria ele sobrevivido à morte dos pais apenas para ser morto por um canibal? Ninguém sabia; mas tais questões eram comuns entre as crianças da Ucrânia, em 1933.

Os deveres dos pais não podiam ser cumpridos. Os casais sofriam enquanto as esposas, por vezes com o angustiado consentimento dos maridos, se prostituíam junto dos líderes locais do partido, em troca de farinha. Os pais, mesmo quando ainda estavam juntos e agiam com a melhor boa vontade, dificilmente podiam cuidar dos filhos. Certo dia um pai, na região de Vynnitsia, saiu para enterrar um dos seus dois filhos e, ao regressar, encontrou o outro morto. Alguns pais amavam os filhos, protegendo-os, trancando-os em cabanas para os manterem a salvo dos bandos itinerantes de canibais. Outros enviavam os filhos para longe, na esperança de que pudessem ser salvos por outros. Havia pais a entregar os filhos a familiares distantes ou a estranhos e a abandoná-los em estações de comboios. Os camponeses desesperados que erguiam os filhos pequenos junto às janelas dos comboios não estavam necessariamente a pedir comida: muitas vezes estavam a tentar entregar as crianças a um qualquer ocupante do comboio, decerto um residente da cidade e que, como tal, não estava prestes a morrer à fome. Os pais e as mães enviavam os filhos para pedir na cidade, com resultados diversos. Algumas crianças morriam de fome no caminho ou chegadas ao seu destino. Outras eram levadas pela polícia para morrer no escuro, numa metrópole estranha, e serem enterradas numa vala comum com outros corpos pequenos. Mesmo quando regressavam, as notícias raramente eram boas. Petro Savhira partiu com um dos seus irmãos para Kiev, para pedir, descobrindo ao regressar que os seus outros dois irmãos já tinham morrido.

Confrontadas com a fome, algumas famílias dividiam-se, os pais viravam-se contra os filhos e os filhos uns contra os outros. Como a polícia estatal, o OGPU, se viu obrigada a relatar, na Ucrânia as «famílias matam os seus membros mais fracos, normalmente as crianças, e usam a carne para se alimentarem». Inúmeros pais mataram e comeram os filhos, tendo acabado por morrer de fome mais tarde. Uma mãe cozinhou o filho para si e para a filha. Uma menina de seis anos, salva por outros parentes, viu o pai pela última vez, enquanto este afiava uma faca para a matar. Outras combinações eram possíveis, é claro. Uma família matou a nora, deu a cabeça a comer aos porcos e assou o resto do corpo.

Contudo, num sentido mais lato, o que destruiu as famílias foi tanto a política como a fome, virando a geração mais jovem contra a mais velha. Os membros dos Jovens Comunistas serviam nas brigadas que requisitavam comida. No entanto, crianças ainda mais jovens, nos Pioneiros, deviam ser «os olhos e os ouvidos do partido no seio da família». Os mais saudáveis estavam encarregados de tomar conta dos campos para impedir os roubos. Meio milhão de rapazes e raparigas adolescentes e pré-adolescentes ocupavam as torres de vigia, observando os adultos na Ucrânia, durante o Verão de 1933. Esperava-se de todas as crianças que entregasses os pais.

A sobrevivência era uma luta moral, tanto quanto física. Uma médica escreveu a uma amiga, em Junho de 1933, que ainda não se tinha tornado canibal, mas que «não estou certa de que isso já não terá acontecido quando receberes esta carta». As pessoas boas foram as primeiras a morrer. Os que se recusavam a roubar ou a prostituir-se morriam. Os que davam comida a outros morriam. Os que se recusavam a comer cadáveres morriam. Os que se recusavam a matar os seus iguais morriam. Os pais que resistiam ao canibalismo morriam antes dos filhos. Em 1933, a Ucrânia estava repleta de órfãos e, por vezes, havia pessoas que os acolhiam. Contudo, sem comida, havia pouco que até o mais gentil dos estranhos pudesse fazer por tais crianças. Os rapazes e raparigas jaziam sobre lençóis e cobertores, comendo os próprios excrementos, à espera de morrer.

Numa aldeia na região de Kharkiv, várias mulheres fizeram o melhor que puderam por tomar conta das crianças. Como uma delas recordava, tinham formado «algo semelhante a um orfanato». As crianças que acolhiam estavam em condições miseráveis: «Tinham estômagos protuberantes; estavam cobertas de feridas, de crostas; os seus corpos rebentavam. Levávamo-las para a rua deitadas em lençóis e elas gemiam. Certo dias calaram-se de repente; voltámo-nos para ver o que se estava a passar e constatámos que estavam a comer Petrus, a criança mais pequena. Estavam a arrancar-lhe pedaços e a a comê-los. E o pequeno Petrus estava a fazer o mesmo, estava a arrancar pedaços do seu próprio corpo e a comê-los. Comeu tanto quanto pôde. Os outros miúdos encostavam os lábios às suas feridas e bebiam-lhe o sangue. Levámos Petrus para longe das bocas famintas e chorámos.»

ibidem


O canibalismo é tabu, tanto na literatura como na vida, já que as comunidades procuram proteger a sua dignidade suprimindo o registo de tão desesperada forma de sobrevivência. Os ucranianos no exterior da Ucrânia, então e até hoje, têm tratado o canibalismo como fonte de grande vergonha. Contudo, ainda que o canibalismo na Ucrânia, em 1933, diga muito sobre o sistema soviético, nada diz sobre os ucranianos enquanto povo.

idem ibidem

Existe na baixa de Manhatann um café literário chamado "KGB", local de tertúlias avant garde. Pequena provocação no género chic, nada demais. Ninguém em seu perfeito juízo imaginaria fazer o mesmo num local chamado "Gestapo". Óptimo! Agora falta o resto. Falta o mesmo peso do mesmo opróbrio. Ninguém pode dizer "Nós não sabíamos..."

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publicado às 18:28


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