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Os crimes de Stalin teriam sido justificados se tivessem produzido a Revolução Mundial.Quando Joachim von Ribbentrop aterrou no aeroporto de Moscovo engalanado com cruzes suásticas, a 23 de Agosto de 1939, houve quem tivesse percebido que tinha sido criada uma nova realidade geopolítica. A revista Time chamou-lhe "O Pacto comunazi", e repetiu-o durante quase dois anos, até que pelo Verão de 1941, a traição de Hitler ao seu parceiro soviético tornou o assunto nulo. Depois, a partir de Dezembro desse ano, Stalin passou a ser "...o nosso filho da puta..." e a narrativa da memória da Europa durante os cinquenta anos seguintes ficou traçada, nos seus contornos gerais. Nessa narrativa já não havia lugar para aquela realidade, nem, em boa medida, para as centenas de milhões de seres humanos que seriam marcados por ela. Entre esses milhões, um chamava-se Chiune Sempo Sugihara; outro chamava-se Andrey Sheptytsky.
Eric Hobsbawm
As crianças que nasciam na Ucrânia no final dos anos de 1920 e no início dos anos de 1930 viam-se num mundo de morte, entre pais impotentes e autoridades hostis. Um rapaz nascido em 1933 tinha uma esperança de vida de sete anos. Mesmo em tais circunstâncias, algumas das crianças mais jovens conseguiam mostrar alguma alegria. Hanna Sobolewska, que perdera o pai e cinco irmãos e irmãs por causa da fome, recordava a dolorosa esperança do irmão mais novo, Jósef. Ao mesmo tempo que inchava devido à fome, não deixava de encontrar sinais de vida. Certo dia tivera a certeza de ver culturas que se erguiam do chão; noutro julgara ter encontrado cogumelos. «Agora viveremos!», exclamava, e repetia aquelas mesmas palavras antes de ir dormir, todas as noites. Depois, certa manhã, acordou e disse: «Tudo morre.»
Timothy Snyder — Bloodlands
Depressa estas situações deixaram de ser dignas de nota. Na escola de Yurii Lysenko, de oito anos, na região de Kharkiv, uma rapariga caiu, simplesmente, durante uma aula, como se tivesse adormecido. Os adultos correram para ela, mas Yurii sabia que não havia esperança, «que ela tinha morrido e que eles a iam enterrar no cemitério, como tinham enterrado outras pessoas no dia anterior e no dia antes desse e em todos os dias». Os rapazes de uma outra escola encontraram a cabeça decepada de um colega de turma enquanto pescavam num lago. Toda a família tinha morrido. Tê-lo-iam comido primeiro? Ou teria ele sobrevivido à morte dos pais apenas para ser morto por um canibal? Ninguém sabia; mas tais questões eram comuns entre as crianças da Ucrânia, em 1933.
Os deveres dos pais não podiam ser cumpridos. Os casais sofriam enquanto as esposas, por vezes com o angustiado consentimento dos maridos, se prostituíam junto dos líderes locais do partido, em troca de farinha. Os pais, mesmo quando ainda estavam juntos e agiam com a melhor boa vontade, dificilmente podiam cuidar dos filhos. Certo dia um pai, na região de Vynnitsia, saiu para enterrar um dos seus dois filhos e, ao regressar, encontrou o outro morto. Alguns pais amavam os filhos, protegendo-os, trancando-os em cabanas para os manterem a salvo dos bandos itinerantes de canibais. Outros enviavam os filhos para longe, na esperança de que pudessem ser salvos por outros. Havia pais a entregar os filhos a familiares distantes ou a estranhos e a abandoná-los em estações de comboios. Os camponeses desesperados que erguiam os filhos pequenos junto às janelas dos comboios não estavam necessariamente a pedir comida: muitas vezes estavam a tentar entregar as crianças a um qualquer ocupante do comboio, decerto um residente da cidade e que, como tal, não estava prestes a morrer à fome. Os pais e as mães enviavam os filhos para pedir na cidade, com resultados diversos. Algumas crianças morriam de fome no caminho ou chegadas ao seu destino. Outras eram levadas pela polícia para morrer no escuro, numa metrópole estranha, e serem enterradas numa vala comum com outros corpos pequenos. Mesmo quando regressavam, as notícias raramente eram boas. Petro Savhira partiu com um dos seus irmãos para Kiev, para pedir, descobrindo ao regressar que os seus outros dois irmãos já tinham morrido.
Confrontadas com a fome, algumas famílias dividiam-se, os pais viravam-se contra os filhos e os filhos uns contra os outros. Como a polícia estatal, o OGPU, se viu obrigada a relatar, na Ucrânia as «famílias matam os seus membros mais fracos, normalmente as crianças, e usam a carne para se alimentarem». Inúmeros pais mataram e comeram os filhos, tendo acabado por morrer de fome mais tarde. Uma mãe cozinhou o filho para si e para a filha. Uma menina de seis anos, salva por outros parentes, viu o pai pela última vez, enquanto este afiava uma faca para a matar. Outras combinações eram possíveis, é claro. Uma família matou a nora, deu a cabeça a comer aos porcos e assou o resto do corpo.
Contudo, num sentido mais lato, o que destruiu as famílias foi tanto a política como a fome, virando a geração mais jovem contra a mais velha. Os membros dos Jovens Comunistas serviam nas brigadas que requisitavam comida. No entanto, crianças ainda mais jovens, nos Pioneiros, deviam ser «os olhos e os ouvidos do partido no seio da família». Os mais saudáveis estavam encarregados de tomar conta dos campos para impedir os roubos. Meio milhão de rapazes e raparigas adolescentes e pré-adolescentes ocupavam as torres de vigia, observando os adultos na Ucrânia, durante o Verão de 1933. Esperava-se de todas as crianças que entregasses os pais.
A sobrevivência era uma luta moral, tanto quanto física. Uma médica escreveu a uma amiga, em Junho de 1933, que ainda não se tinha tornado canibal, mas que «não estou certa de que isso já não terá acontecido quando receberes esta carta». As pessoas boas foram as primeiras a morrer. Os que se recusavam a roubar ou a prostituir-se morriam. Os que davam comida a outros morriam. Os que se recusavam a comer cadáveres morriam. Os que se recusavam a matar os seus iguais morriam. Os pais que resistiam ao canibalismo morriam antes dos filhos. Em 1933, a Ucrânia estava repleta de órfãos e, por vezes, havia pessoas que os acolhiam. Contudo, sem comida, havia pouco que até o mais gentil dos estranhos pudesse fazer por tais crianças. Os rapazes e raparigas jaziam sobre lençóis e cobertores, comendo os próprios excrementos, à espera de morrer.
Numa aldeia na região de Kharkiv, várias mulheres fizeram o melhor que puderam por tomar conta das crianças. Como uma delas recordava, tinham formado «algo semelhante a um orfanato». As crianças que acolhiam estavam em condições miseráveis: «Tinham estômagos protuberantes; estavam cobertas de feridas, de crostas; os seus corpos rebentavam. Levávamo-las para a rua deitadas em lençóis e elas gemiam. Certo dias calaram-se de repente; voltámo-nos para ver o que se estava a passar e constatámos que estavam a comer Petrus, a criança mais pequena. Estavam a arrancar-lhe pedaços e a a comê-los. E o pequeno Petrus estava a fazer o mesmo, estava a arrancar pedaços do seu próprio corpo e a comê-los. Comeu tanto quanto pôde. Os outros miúdos encostavam os lábios às suas feridas e bebiam-lhe o sangue. Levámos Petrus para longe das bocas famintas e chorámos.»
ibidem
O canibalismo é tabu, tanto na literatura como na vida, já que as comunidades procuram proteger a sua dignidade suprimindo o registo de tão desesperada forma de sobrevivência. Os ucranianos no exterior da Ucrânia, então e até hoje, têm tratado o canibalismo como fonte de grande vergonha. Contudo, ainda que o canibalismo na Ucrânia, em 1933, diga muito sobre o sistema soviético, nada diz sobre os ucranianos enquanto povo.
idem ibidem
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