Bem-vindos ao Admirável Mundo Novo! Uma mãe-solteira do estado americano do Utah, conseguiu recentemente vender a sua testa (!), recebendo USD $10 000 por fazer uma tatuagem permanente, publicitando um casino online; as tatuagens temporárias valem menos, para quem estiver interessado. Em algumas cidades da Califórnia, os presos (por crimes não violentos) podem pagar $90 por noite, em troca do privilégio de terem uma cela individual, calma e confortável, sem que os presos não-pagantes os incomodem. Por USD $7 500, qualquer um se pode oferecer para testar novos produtos farmacêuticos, com o preço final dependendo dos efeitos do produto e do desconforto previsível do teste. Ainda não se podem comprar crianças, mas já é possível alugar o útero duma mulher indiana por $8 000. Porquê parar? Se alguém se disponibilizar para ser um escravo temporário (digamos, por 14 anos, como no Velho Testamento), não terá grandes dificuldades em encontrar empresas online, dispostas a disponibilizar o produto nos mercados adequados; a troco de uma comissão adequada, claro, mas é assim que o mercado funciona. É assim que se implementa aquele princípio sacrossanto da liberdade de contrato, que Adam Smith e os seus fiéis todos os dias juram defender. Em nome do progresso, pois com certeza.
O filósofo americano Michael Sandel faz-nos estas e outras perguntas da forma mais directa: O Que É Que Não Está À Venda? No fim de contas, todos aqueles exemplos (e muitos outros), mais não são do que o exercício daquela liberdade essencial. Num ponto qualquer do caminho, deixámos de ser Economias de Mercado para nos transformarmos em Sociedades de Mercado. E o facto simples, é que ninguém o fez por nós, fomos nós cidadãos do tal "mundo livre" que o fizemos. Foram os cidadãos americanos que elegeram livremente um actor de telenovelas chamado Ronald Reagan; foram os cidadãos britânicos que elegeram livremente a bruxa má do Oeste. Fomos nós, o colectivo dos cidadãos eleitores de Portugal, que elegemos o único fulano que eu conheça, que começou a trabalhar aos 37 anos. O autor diz-nos que está mais do que na hora de nós todos, os ainda-soberanos, decidirmos colectivamente quais são os limites do mercado.
Talvez o aviso venha demasiado tarde. Os gregos acordaram hoje a pensar na Junta dos Coronéis, mas provavelmente a sua memória engana-os. No fim de contas, o actual parlamento grego tem toda a legitimidade para votar os Actos da Habilitação de Poderes que forem considerados necessários. O tal rapazola que começou a trabalhar mais tarde do que os filhos do sr. Kadahfi tem toda a legitimidade para pedir ao nosso parlamento que lhe habilite os dele. E o parlamento votará favoravelmente e o nosso presidente, a quem não devemos chamar palhaço promulgará. Bem-vindos então, aos dias da post-democracia. Não digam a ninguém "Nós não sabíamos", senão o fantasma da Marlene Dietrich vai atormentar as vossas noites. Aquilo que nos separa a todos do caos, é apenas a linha frágil dum piquete de greve grego.
Imaginemos que no dia 3 de Novembro de 2000, aqueles judeus americanos idosos, residentes no Estado da Florida, que se levantaram da cama para irem votar, tinham conseguido evitar ser confundidos pelos boletins de voto mais absurdos que já alguém desenhou, e que tinham evitado acabarem por votar no anti-semita Pat Buchanan, em vez do candidato da sua escolha. O que seria diferente? Em que é que este malfadado século seria diferente?
Os planos da Al-Qaida, para um ataque aos Estados Unidos eram antigos, e foram preparados durante vários anos. Perante os eventos do 11 de Setembro de 2001, o estado americano reagiria como reagem sempre os estados-soberanos, ao serem atacados. Nada teria sido muito diferente, com a excepção dum pequeno pormenor. Obviamente, o presidente Al Gore não teria permitido que Ossama Bin-Laden se escapasse por entre as malhas que vagamente rodearam os seu refúgio nas montanhas de Tora-Bora. A estas horas, muito provavelmente, a aviação americana e britânica continuariam a impor as mesmas zonas de exclusão aérea e os iraquianos continuariam a ser dominados por um regime nojento e a usarem as escolas e outros equipamentos sociais que esse regime nojento pagava com o petróleo que conseguia contrabandear através das suas fronteiras; os xiitas do delta dos dois rios continuariam no fundo de todas as escalas sociais, a única diferença sendo, que não teriam milícias armadas para protegerem o seu direito a permanecerem no fundo de todas as escalas sociais. O fundamentalismo islâmico seria hoje uma nota de rodapé nos livros de História, a única diferença real, seriam as vítimas que não teriam existido.
Mas imaginemos que, em 2004, o presidente Al Gore teria reparado num jovem político do Illinois, que já na altura levantava grandes esperanças e, para marcar o seu próprio lugar nos tais livros, o teria convidado para fazer parte da sua lista. O vice-presidente Obama teria vencido facilmente as eleições de 2008, tanto mais que, sem os excessos inacreditáveis dos outros, os que foram, a crise financeira de 2008 teria sido atrasada e os sub-primes americanos teriam continuado a inchar durante mais dois anos. O essencial já estava presente, inscrito na pedra, aquando da revogação do Glass-Steigall, com a a assinatura "William Jefferson Clinton". As bolhas europeias, essas, continuariam a inchar durante mais dois anos, propulsionadas pelos bancos franceses e alemães e pelas suas taxas de reservas, entre os 5% e os 3%.
As bolhas iriam rebentar, claro. Com o nome Lehman Brothers ou outro, mas ninguém duvida que o presidente Obama tivesse mostrado a decisão que o caracteriza e, pela sua actuação pronta, tivesse assegurado a sua própria re-eleição, a dois anos de distância. Nada seria muito diferente, com a excepção das festas do chá americanos, que não teriam existido. A chanceler alemã estaria a dizer, por esta altura que, e cito, "...negociar em dívida soberana, não pode ser o único negócio em todo o Mundo, que não envolve riscos..." (sic). Mas as bolhas estariam a rebentar, ou já teriam rebentado, e seriam ainda muito maiores. O presidente Hollande iria demorar mais um ano, coisa menos coisa, até perceber que o problema não eram os bancos cipriotas, mas sim os franceses. Bem acompanhados do outro lado do Reno claro, que os alemães nunca deixam os seus créditos por mãos alheias. Nada seria muito diferente. A única diferença seriam as vítimas.
Por estas bandas, as bolhas que finalmente teriam rebentado, dariam origem a uma grande vaga de fundo, neste período pré-eleitoral que estaríamos a viver e o primeiro-ministro José Socrates estaria prestes a ser substituído por uma maioria absoluta, mais maioritária ainda do que as da Travessa do Possolo. Rapidamente, o verdadeiro agente histórico viria ao de cima, e por estas horas, o Senhor. Prof. Dr. Oliveira Gaspar estaria já a treinar o seu grande motto, "Orgulhosamente acompanhados!". A única diferença real seriam as vítimas que não teriam acontecido.
A única grande diferença, teriam sido as vítimas que não teria havido, desde o Iraque até à Baixa da Banheira. Este seria um século muito mais simpático, mas nada de essencial seria muito diferente. A diferença seriam as crianças, e essa é toda a diferença do Mundo. Raios partam os judeus da Florida!
Em última análise, existem apenas dois tipos de sociedades. Umas podem ser chamadas 'fechadas' e as outras 'abertas'. [...]O drama das sociedades abertas é que têm que permitir a actuação dos seus inimigos.
Karl Popper, in A Sociedade Aberta e os seus Inimigos
Quando me propus escrever esta série de posts, sabia antecipadamente que o assunto se iria tornar progressivamente mais difícil e pelo facto simples de existir uma hierarquia clara nos problemas sociais e civilizacionais gerados por aquela que é ainda (!) a nossa civilização. A primeira — e última, que fique claro — assente em combustíveis fósseis.
As duas primeiras maldições são simples. Resultam de restrições físicas e a única coisa que a sôdona física nos diz é por onde não podemos ir e quais são os buracos que iremos encontrar, ao longo do caminho. A terceira, o trólaró do "Há petróleo no Beato!" parece ser um assunto já de outra natureza, mas continua a ser uma restrição física. O tempo decorrido entre a descoberta duma qualquer jazida fóssil e a sua produção plena nunca consegue ser inferior a uma década. O facto de as sociedades envolvidas sentirem, de facto, os seus efeitos muito depressa — veja-se o exemplo da Escócia e da Noruega, com a descoberta do petróleo do Mar do Norte — está já na interface entre a física e a economia e mostra-nos como existe alguma margem de manobra em torno das maldições fósseis. Chama-se inteligência colectiva e não é pelo facto de ser rara que se revela menos importante.
O que me fez andar para aqui às voltas, como um cão a tentar morder o rabo, foi ter-me apercebido que as minhas palavras a respeito das erupções de violência, quando a curva de Hubbert sofre aquelas inflexões qualitativas, podem ser lidas quase ao contrário daquilo que eu quis dizer. Para começar, eu não estava a dizer algo como "...descobri uma nova lei da história...". As leis da história são apenas o exercício do direito humano à estupidez, de Marx aos gasparídeos. Muito diferentes, que fique claro, mas com um ponto comum e esse ponto comum é maleita de que eu não sofro : a crença em leis da história.
O período de tensão actual (desde o início do século), resulta do ponto mais complicado da curva de Hubbert, ou seja, o pico da produção. No entanto, os actores principais, sentiram essas tensões de forma completamente diferente. Bush & Co. sentiram-nas como a necessidade de controlar a oferta, tal como o senhor Saddam tinha sentido as tensões dos choques petrolíferos dos anos setenta, e reagiram exactamente da mesma forma, a única diferença é que uns invadiram o Irão e os outros invadiram o Iraque. Resultados semelhantes.
Os choques de preços do início do século, esses, foram o resultado de os líderes chineses terem sentido a necessidade de assegurar a sua própria procura, percebida como estando numa fase de crescimento exponencial; exactamente o mesmo que franceses e britânicos sentiram, no tempo do Sykes-Picot. Mesmas necessidades, resposta diferente. Que seja do meu conhecimento, não houve sangue derramado, como consequência dos choques de preços do início do século. A diferença chama-se, novamente, inteligência colectiva.
Não estou a tentar justificar o regime chinês, que fique claro. Estou apenas a tentar abocanhar a minha própria cauda, e acho que já encontrei uma maneira de o fazer. Isto é a Internet, portanto, peço aos leitores que façam um exercício simples. Agarrem numa folha A4 e listem todos os episódios de agressão externa chinesa, durante os últimos 2 000 anos. Nada de tergiversar. Se teve origem em território chinês e foi dirigida ao exterior, é chinesa (incluindo os episódios resultantes da expansão mongol).
Ninguém conseguiu encher a primeira página, pois não? Agora, regressem àquela resma de papel A4 e comecem a listar os episódios de agressão externa do Reino da Suécia, durante os últimos 800 anos. A expansão viking dos séculos anteriores nem sequer é para aqui chamada. Então, a resma de papel chegou, ou já estava nas lonas? Talvez aquele intangível e indefinível a que chamei inteligência colectiva exista, no fim de contas.
Voltemos então às maldições. O paradoxo de Popper, que citei no início, não é assunto de opinião, não é coisa passível de "...eu acho que..."; as achações e as crenças não são para aqui chamadas. É apenas uma construção lógica. Se algumas sociedades são abertas, então têm que permitir a actuação dos seus inimigos. Tanto o Adolfo como a Guidinha dos limões, recentemente falecida, subiram ao poder usando os mecanismos de abertura das suas próprias sociedades. Um, para o tirar de lá, foi preciso destruir meio continente; quanto à segunda, foi impossível evitar que se metastizasse numa catrefa enorme de gaspares. Continuamos sem saber o que lhes fazer, sem destruir a outra metade do mesmo continente. E isto porque o lema de Popper tem um corolário: se existem apenas dois tipos de sociedades, existem apenas dois tipos de economias. Umas são de recursos exauríveis, as outras de recursos renováveis.
Dizer que um qualquer bem é um recurso renovável, não significa que a respectiva economia seja um mar de rosas. A água e a energia são os dois recursos primordiais para a existência de grupos sociais organizados. A água, não só é renovável como é indestrutível. Faça-se o que se fizer, o total de água do planeta permanece constante. O problema é que nós não "bebemos água"; bebemos água potável, o que a torna um recurso crítico. O primeiro de todos a ter sido regulado pelo Estado. O que faria Ramsés, se lhe aparecesse um qualquer gasparídeo a propor privatizar a água potável? Acho que mandava que lhe atassem as mãos e os pés à cauda de quatro cavalos diferentes e que chicoteassem as garupas dos quatro ao mesmo tempo. Hmmm! É capaz de ser uma ideia...
Quanto ao outro daqueles recursos primordiais, a energia, não tem que ser, à partida, uma coisa ou outra. No entanto, as energias fósseis são um caso de economia de recursos exauríveis; em absoluto, são o único caso. Em cada quilograma de aço que sai das siderurgias, existe uma percentagem elevada de "aço antigo"; não é preocupação ecológica, é o facto de ser mais barato fazê-lo desta forma, do que processar apenas minério de ferro recém-extraído. Os combustíveis fósseis, queimam-se e acabou. Em última análise, não há nada que nos consiga proteger da lógica inexorável da economia de recursos exauríveis; nem a tal inteligência colectiva, mesmo esta só resulta durante períodos limitados de tempo. Acho que estou só a respirar fundo, antes de contemplar a sua loucura essencial.
Em 1904, o coronel (depois general) Younghusband, comandou uma expedição militar britânica ao Tibete. Não teve grande assunto, mas, à chegada a Lhasa, o comandante britânico reportou uma recepção entusiástica. Os cidadãos da capital acotovelavam-se nas ruas, batendo palmas à passagem das tropas. Se isto não é entusiasmo..., acontece que os tibetanos batem palmas para afugentar os demónios. Ah! E deitam a língua de fora, em sinal de respeito. Por isso, nada de deitar a língua de fora ao nosso Zé Grilo, que a senhora Maria anda a fazer umas sessões de meditação Mahayana e pode ficar com ideias.
Juro a pés juntos que não faço a menor ideia de qual é o contexto cultural do gesto do senhor Shinzo Abe, actual primeiro-ministro do Japão. A única certeza que eu tenho é que não é aquilo que (nos) parece. Mas lá que parece, parece. E tanto que parece, que a francesa de Berlim há-de estar com o pêlo todo eriçado. E com motivos para isso.
Então não querem lá ver que aquele..., qualquer coisa duma figa, não só não quer saber duma dívida pública superior a 200% do PIB, como pôs o estado nipónico numa senda de gastação desenfreada e pretende induzir — t'arrenego, Belzebu, gasparacho, beldroega — inflação! Inflação, pelo menos 2% ao ano. Inflação, aquela coisa que devora as rendas financeiras. E ainda por cima, parece estar a funcionar.
Por isso, quando um daqueles suspeitos do costume vos arengar com as "inevitabilidades" e com os "consensos", mais o respeito devido a Sua Excelência, chamem-lhe algo que Sua Excelência não consegue perceber: Kaijin ! Não há problema. A PGR não vai conseguir acusar ninguém, porque nenhum de nós consegue pronunciar correctamente o japonês. O mais provável, é que seja exactamente isso que o senhor Abe esteja a dizer. O tradutor do Google apresentou este resultado para "Ombu Kaijin!" e eu transcrevo: "Fuck you, bárbaro sub-humano, monstro marinho do outro lado do mar!"
O artigo do senhor Paul Krugman esclarece as minhas dúvidas a respeito do processo de publicação do tal artigo "mais que tudo" dos austeritários: não foi sujeito a qualquer processo de revisão por pares. Os autores "fizeram circular" (sic) os resultados à sua vontade e só recentemente facultaram o acesso aos seus dados; o resultado foi tiro no porta-aviões à primeira. A Universidade é suposta ser um templo da inteligência; este episódio mostra como as faculdades de economia se transformaram em meros aparelhos de propaganda de nariz incontinente (parece mal dizer 'ranhosa'). Pelo menos, hoje sabemos ao que andamos: propaganda!
Estou a escrever este post para reclamar o meu sagrado direito à parvoíce. A RTP irá transmitir hoje a mais antecipada, receada, comentada, dissecada, adivinhada, lamentada, entrevista, desde talvez, a primeira das "conversas em família" do sr. Marcelo Caetano: o Animal volta ao pequeno ecran em horário nobre.
Podem ocorrer surpresas. Não ficarei surpreendido se tal acontecer, mas o mais provável é que os que gostam dele o adorem, que os que não gostem o odeiem e que aqueles para quem, como eu, o assunto não tem substância, tenham que concluir que fizeram mais uma vez figura de tolos, ao não serem capazes de pensar em melhor forma de perder tempo.
Não acredito que o faça, porque duvido que O Animal tenha realmente algo de animalesco, o que implicaria ter..., nada de ordinarices, pelo menos em português..., aquilo a que os nosso vizinhos do lado chamam los cojones suficientes para isso. Não por míngua de oportunidades e temas, note-se. Confrontado com a geração de políticos mais medíocre e incompetente, que este continente estafado já conheceu, pelo menos desde os dias em que Calígula decidiu nomear o seu cavalo senador, qualquer gatinho meigo conseguiria rugir que nem um leão; se apenas o quisesse. Se não fosse também um zémanel.
O problema não é "O Animal". Olha, zémanel, se tu és um daqueles talvez 320 000 portugueses que, periodicamente, oscilam entre o ps e o psd e assim mantêm a ilusão da alternância democrática e quiseres saber onde residem realmente os problemas que te oprimem e esmagam, faz uma coisa simples: olha para o espelho e vais ver o alojamento real desses problemas, ali, entre as tuas orelhas esquerda e direita. O problema, zémanel, és tu. Tu e a tua cabeça. Infelizmente, a única que tens.
Another head hangs lowly, Child is slowly taken. And the violence caused such silence, Who are we mistaken?
But you see, it's not me, it's not my family. In your head, in your head they are fighting, With their tanks and their bombs, And their bombs and their guns. In your head, in your head, they are crying...
In your head, in your head, Zombie, zombie, zombie, Hey, hey, hey. What's in your head, In your head, Zombie, zombie, zombie?
Another mother's breakin', Heart is taking over. When the vi'lence causes silence, We must be mistaken.
It's the same old theme since nineteen-sixteen. In your head, in your head they're still fighting, With their tanks and their bombs, And their bombs and their guns. In your head, in your head, they are dying...
In your head, in your head, Zombie, zombie, zombie, Hey, hey, hey. What's in your head, In your head, Zombie, zombie, zombie?
Mesmo que os sábios, no seu final, saibam que a escuridão é certa, Porque as suas palavras não se bifurcaram em raios, Não deslizam suavemente nessa noite escura.
Houve-se hoje, com demasiada frequência, aquela frase que coloquei no título: "Isto nem no tempo do Salazar...". Inquieta-me: a que será que me obriga a "idade da razão", como escolhi traduzir o verso de Dylan Thomas? Evoca-me memórias desse tempo, como quando o meu avô paterno se sentou, pela primeira vez, à frente duma televisão. A minha avó tinha-o convencido a ir a casa da filha mais nova, assistir à reportagem da inauguração da ponte sobre o Tejo: "Era isto que querias que eu visse? Já os conheço a todos". Lá se deixou convencer a comprar o caixote, Telefunken, claro. Mas depois não olhava para ele. A sua fonte principal de notícias era um rádio, um monstro a válvulas, Grundig, claro, onde ele costumava ouvir o Fernando Pessa, nos noticiários da BBC, durante a guerra; "São todos uns boches, mas ninguém faz rádios como eles".
Homens bons, na última onda, chorando o brilho Com que os seus actos frágeis teriam dançado numa baía verde, Rasgam, Fulminam a morte da luz.
Lembro-me dum salão de bilhar, em Almada, coisa de alto gabarito (para quem gostar da arte, claro). Ainda existe, mas..., ah! perdeu o carisma. E lembro-me dum fulano que por lá sempre parava. Um dia disse-me "...tu falas demais...". Logo me avisaram: "cuidado que o gajo é um bufo da Pide"; bem o sabia. A sensação desagradável, foi que aquele bufo gostava de mim, e estava a tentar proteger-me. Desapareceu, depois do 25 Abril, nunca mais o vi.
Os violentos que capturam e cantam o Sol no no seu voo E aprendem demasiado tarde que o choraram na sua rota, Não deslizam suavemente nessa noite escura.
Lembro-me. De ouvir contar histórias sem fim a respeito dos tempos do "racionamento"; já era taludo, e já depois do 25 de Abri, quando fiquei a saber, com espanto ingénuo, como esse racionamento, o tempo do "Livro-vos da guerra mas não vos livro da fome", se iniciou para exportar bens alimentares para a Espanha nacionalista de Franco, entre 1936 e 1939. Tudo a bem da balança comercial, claro.
Homens graves, próximos da morte, vendo com vista deslumbrante, Como olhos cegos podem arder, tais meteoros, e sorrir Rasgam, fulminam a morte da luz.
Lembro-me da Cecília Jonet, ou da Isabel Supico-Pinto, ou lá como é que a megera da comendatriz se chamava, e do asco que me causava aquela solicita propaganda de guerra. Não me lembro dos soldadinhos que ela adorava, que nunca conheci nenhum. Esses, acho que só as mães os recordaram; talvez os filhos que nunca viram e que nunca os viram a eles.
E tu meu pai, nesse teu cume triste, Amaldiçoa-me, abençoa-me, com as tuas lágrimas ferozes, te peço. Mas não deslizes suavemente nessa noite escura. Rasga, fulmina a morte da luz.
Compreendo hoje que não conheci "Os tempos do Salazar". Assisti ao extertor da sua agonia, mas nada do que eu relembro, por memória própria ou próxima, tem a ver com os dias que vivemos. Falámos e abusámos da palavra fascismo, ao ponto de o termos banalizado. Hoje, assistimos a algo diferente, à ascensão do monstro, que na sua encarnação anterior, teve lugar nos anos trinta e quarenta do século passado. É a mesma agressão, a mesma arrogância, na criação dum "mundo novo". O mesmo desprezo e a mesma loucura. Não vou comparar os dias de hoje com os tempos da "sardinha para três"; esses, nunca os conheci. Mas se há algo que eu sei, é que todas as encarnações do monstro têm algo em comum e esse algo chama-se dor. Se há algo que eu sei, é que a dor dói.
It's coming to America first, the cradle of the best and of the worst. It's here they got the range and the machinery for change and it's here they got the spiritual thirst. It's here the family's broken and it's here the lonely say that the heart has got to open in a fundamental way: Democracy is coming to the U.S.A. — Democracy, Leonhard Cohen
...Ou como os poetas também se enganam. Ou talvez não seja um erro, e o essencial esteja contido naqueles dois primeiros versos, Está a chegar à América primeiro / O berço do melhor e do pior. Devo dizer que não acompanhei o folhetim a respeito de como é que o ti Aníbal ia justificar o facto de violar os juramentos solenes que fez, não os violando, mas passando a bola, ou mais exactamente, chutando para canto.
Tudo como dantes, quartel-general em Abrantes, não fora haver este fulano... Aqui há uns anos, toda a gente lhe chamaria "geek". Depois, durante o ciclo eleitoral de 2008, as suas previsões do resultado final e a exactidão das mesmas, levaram o New York Times a convidá-lo para manter um blog no seu site; durante o mais recente ciclo eleitoral americano, o 538 (o número total de grandes eleitores, que tudo decidem), teve mais visitas do que o resto do site. E mais uma vez, bingo! Resultado final: 50 a 0. O fivethirtyeight acertou em todos os resultados; até a Florida passou do rosa-pálido dos republicanos, para o azul-bebé dos democratas, embora só na véspera da eleição.
A ano de 2013 começa com maus presságios. A presidência que temos publicou um OGE inconstitucional; talvez. Se o tivesse enviado para fiscalização preventiva, estaríamos perante um texto talvez inconstitucional. Assim, estamos perante uma situação igual à de 2012. Talvez. Ou então, até poderemos estar perante um caso de sucesso: talvez já não valha a pena fazer nada.
Talvez a economia tenha caído uns 20%, desde o seu pico em 2007 e esteja a crescer de forma acelerada, para retomar o valor que tinha no início do século, ou antes disso. Talvez a população deste país tenha conseguido cumprir pelo menos, alguns dos seguintes requisitos:
Não seja capaz de pagar a renda da casa, ou a respectiva hipoteca, nem as contas da água e da luz.
Não seja capaz de manter a sua habitação adequadamente aquecida no Inverno.
Não seja capaz de fazer face a despesas inesperadas.
Não tenha possibilidade de comer carne, ou outra fonte de proteínas, com regularidade.
Não tenha possibilidade de gozar férias.
Não consiga ter uma televisão.
Não consiga ter uma máquina de lavar.
Não consiga ter um automóvel.
Não consiga ter um telefone.
De acordo com as definições oficiais do Eurostat, os portugueses que verificarem três das condições acima, estarão numa condição de privação material; os que verificarem quatro ou mais condições, estarão numa situação de privação material severa. Isso não impedirá que este país seja declarado um exemplo de sucesso.
Talvez os vencimentos mínimos tenham caído para cerca de $168 USD (sim, dólares americanos) por mês; talvez mais de 250 000 portugueses estejam a emigrar, em cada ano. Não será por isso que uma qualquer Jonet de coturno internacional se coibirá de nos declarar "...um caso de sucesso...".
Será que tudo isto parece forçado? O facto simples é que não estou a falar do futuro: estou a falar do passado
Estou certo que a Jonet gostaria mais desta.
Ou então desta, talvez. Todas são copyright do New York Times.
A nós, a todos nós, cabe-nos fazer como que os sonhos das Jonets não se concretizem.
As últimas eleições americanas tiveram dois vencedores incontestáveis: um dá pelo nome improvável de Barack Hussein Obama, e muitos milhões, pelo Mundo fora, deram um grande suspiro de alívio. Eu incluído. Ficou tudo pelo alívio, mas convenhamos que não é lá muito realista esperar mais do Novo Mundo.
O outro vencedor, ainda mais incontestado e sobretudo, ainda mais improvável, foi um estatístico e blogger chamado Nate Silver. O seu blog — '538' é o número de grandes eleitores no colégio eleitoral que, em última análise, determina o vencedor — acertou em todos os cinquenta estados americanos. Até a Florida mudou do cor-de-rosa pálido dos Republicanos, para o azul-bebé dos Democratas, mesmo na véspera das eleições (e por isso não se reflectiu na previsão final).
Por cá..., bem, por cá, aquela ameba espongiforme e urticante, chamada passos, cita a sondagem do jornal i (outra coisa bem esquisita, diga-se de passagem) como sinal de apoio às suas políticas.
Acontece que o '538', em época de balanço publicou um resumo das sondagens utilizadas no seu modelo Bayesiano. Este é o resumo dos dados usados, ao longo dos meses.
Note-se que um qualquer método estatístico erra quando as suas previsões se afastam do resultado final; está enviesado (bias) quando esses erros se acumulam só num dos lados. O enviesamento da vasta maioria daquelas sondagens é, digamos, notório. O erro, puro e simples, de alguns dos maiores nomes do ramo, deveria ser suficiente para os convidar a dedicarem-se a outra actividade, sei lá, a agricultura hidropónica.
Acontece que os "estudos de opinião" são, hoje em dia, um dos mecanismos preferidos para assegurar a reprodução da narrativa dominante. O sucesso do '538' foi possível apenas porque o processo eleitoral americano gera uma quantidade enorme de informação. A lista a seguir é longa, mas inclui todas as fontes. Neste país, e na Europa em geral, o poder instalado joga na escassez. Não só, mas também, na escassez de informação.
Um dos aspectos mais notórios deste balanço, são os resultados muito bons do estreante Google. O seu método é radicalmente novo e, mais do que isso, é barato. Qualquer um o pode fazer, com custos mínimos. Eis um assunto ao qual vale a pena voltar.
Gera apenas crianças-homem; Pois não pode a tua natureza destemida compor outra coisa senão machos.
— Macbeth, Acto 1, Cena 7
Interrompi a tradução de O Plano de Chicago Revisitado no ponto em que os autores abordam o conceito essencial de usura. Todas as grandes religiões a condenam; a vasta maioria dos sistemas de poder, ao longo da História, foram suas vítimas, e, no entanto, os detentores daquele pilar do poder que nasce no cano duma espingarda, revelam-se, hoje, incapazes de o afrontar. Recorde-se que os autores rejeitam a definição simplista de usura como “a prática de juros excessivos”, e em vez disso definem-na como “tomar algo em troca de nada” pela utilização calculada do sistema monetário para obtenção de ganhos privados.
"Do ponto de vista histórico, este facto tem assumido duas formas. A primeira forma de usura é a apropriação privada do lucro gerado pelo dinheiro duma qualquer sociedade. O dinheiro privado tem que ser criado pelo empréstimo [pelo crédito], a uma taxa de juro maior do que zero, ao mesmo tempo que os detentores desse dinheiro, devido aos benefícios não-pecuniários da sua liquidez, se contentam em receber uma pequena retribuição, ou mesmo nenhuma.
Portanto, enquanto que parte da diferença entre juros passivos e activos fica a dever-se a uma remuneração do risco, outra parte maior fica a dever-se aos benefícios gerados pelos serviços de liquidez [usar uma ATM, por exemplo, em vez de guardar o dinheiro debaixo do colchão]. Este é um privilégio que, devido aos seus enormes benefícios, é muitas vezes originado por comportamentos rentários intensos. Zarlenga (2002) documenta este facto em múltiplos episódios históricos. Voltaremos a este assunto, a diferença [spread (??!)] entes taxas de juros activas e passivas, ao calibrarmos o nosso modelo teórico.
A segunda forma de usura é a capacidade dos criadores privados de dinheiro, de manipularem a sua oferta para benefício próprio, criando uma abundância de crédito em tempos de expansão económica, logo de bons preços das mercadorias, seguida duma contracção do crédito, logo da oferta de dinheiro, em tempos de baixos preços das mercadorias. Um exemplo típico é o ciclo das colheitas, nas sociedades agrárias antigas, mas Zarlenga (2002), Del Mar (1895), bem como os exemplos citados nessas obras, contêm numerosos outros exemplos em que este mecanismo é detalhado. De forma repetida, conduziu à falência de devedores, apropriação de bens dados como garantia, e, em consequência, à concentração de riqueza nas mãos dos credores. Do ponto de vista macroeconómico, tem pouca importância que estes factos sejam o resultado de uma manipulação maliciosa, ou que sejam uma característica inerente dos sistemas [monetários] baseados na criação privada de dinheiro. Também regressaremos a este ponto, no nosso modelo teórico.
Uma discussão extensiva das crises geradas pela dívida excessiva, pode ser encontrada em Hudson e van der Mierop (2002). Foi esta experiência, adquirida ao longo de milénios, que levou à proibição da usura e/ou ao perdão periódico das dívidas, nos textos sagrados das religiões do Médio-Oriente. A mais antiga dessas crises, na História grega, deu origem às reformas de Sólon, em 599 AC, as quais foram uma resposta à crise severa dos pequenos agricultores, em resultado da emissão de moeda metálica com juros, por uma oligarquia rica. É extremamente esclarecedor compreender que, nestes tempos antigos, as reformas de Sólon já continham aquilo a que Henry Simons (1948), um dos principais proponentes do Plano de Chicago, se referiria como “sociedade financeiramente de bem”. Em primeiro lugar, ocorreu um cancelamento generalizado de dívidas, e a restituição de terras que tinham sido confiscadas pelos credores. Em segundo lugar, os produtos agrícolas foram monetizados, pela introdução de preços mínimos oficiais. Visto que a fonte dos meios de pagamento dos devedores agrícolas era o valor dos seus produtos, esta prática transformou a finança da dívida em finança de bens intangíveis. Em terceiro lugar, Sólon disponibilizou uma quantidade muito maior de moeda emitida pelo governo, logo, isenta de dívida, o que reduziu a necessidade de contrair dívida privada. As reformas de Sólon foram de tal forma bem sucedidas, que, 150 anos depois, a República Romana enviou uma delegação à Grécia para as estudar. Tornaram-se a a base para o sistema monetário da República a partir de 454 AC (Lex Aternia), até ao tempo das Guerras Púnicas (Peruzzi, 1985).
Foi também por esta altura que se estabeleceu uma ligação entre as ideias antigas a respeito da natureza do dinheiro e as suas interpretações mais modernas. Isto aconteceu através dos ensinamentos de Aristóteles, os quais tiveram uma influência profunda no pensamento ocidental. Em Ética, Aristóteles afirma claramente a natureza pública/institucional do dinheiro, e rejeita qualquer visão baseada na troca de mercadorias a granel, ao dizer que “ O dinheiro existe não pela Natureza, mas pela Lei”. Os Diálogos de Platão contêm conceitos similares (Jowett, 1939). Esta visão reflectia-se em muitos dos sistemas monetários dessa época, os quais, ao contrário do que afirma uma crença popular entre historiadores monetários, eram baseados em moeda fiduciária emitida pelo Estado e não em dinheiros baseados em mercadorias. Exemplos destes factos incluem o extremamente bem-sucedido sistema monetário de Esparta (circa 750-415 AC), introduzido por Lycurgus, o qual se baseava em discos de ferro, de valor intrínseco baixo, o sistema Ateniense de 390-350 AC, baseado em moedas de cobre e, mais importante ainda, o sistema Romano (circa 700-150 AC), o qual era baseado em placas de bronze e mais tarde em moedas do mesmo material, o qual tinha um valor metálico muito inferior ao seu valor facial.
Muitos historiadores (Del Mar 1895) atribuíram parcialmente o colapso da República Romana ao aparecimento de uma plutocracia que acumulou uma riqueza privada imensa, às custas dos cidadãos em geral. A sua ascenção foi facilitada pela introdução de moedas de prata, de emissão privada, e mais tarde também de moedas de outro, a preços que excediam largamente o seu valor como mercadoria, isto durante o período de emergência criado pelas Guerras Púnicas. Com o colapso de Roma, muito do conhecimento e experiência monetária perdeu-se, no Ocidente. Mas os ensinamentos de Aristóteles permaneceram importantes, pela sua influência nos pensadores escolásticos, em particular S. Tomás de Aquino (1225-1274). Esta é, em parte, a razão pela qual, até à Revolução Industrial, o controlo monetário, no Ocidente, permaneceu nas mãos do Governo, ou da Igreja, e permaneceu inseparável da soberania, em todas as sociedades envolvidas. Contudo, isto iria mudar, e as origens da mudança podem ser ligadas ao aparecimento da banca privada, após a queda de Bizâncio, [4ª Cruzada] em 1204, com governantes progressivamente mais dependentes de empréstimos privados, para financiarem guerras. Contudo, o controlo monetário fundamental, permaneceu em mãos soberanas durante mais alguns séculos. O Banco de Amesterdão (1609-1820) ainda era propriedade do Estado, e mantinha um total de 100% de reservas dos depósitos dos seus clientes. E o julgamento dos 'Dinheiros da Irlanda' (1601) confirmou o direito do soberano a emitir moeda metálica sem valor intrínseco, como promissória de valor, legalmente válida. Foi o decreto britânico da 'Livre Emissão de Moeda', de 1666, juntamente com a fundação do Banco de Inglaterra, de carácter privado, que estabeleceu o precedente do abandono por um soberano, do controlo monetário. Os séculos seguintes oferecem amplas perspectivas para a comparação dos resultados da emissão privada e pública de dinheiro.
Os resultados [desta mudança], para o Reino Unido, são particularmente claros. Shaw (1896) examinou os registo para os diferentes monarcas ingleses, e estabeleceu que, com uma excepção (Henrique VIII), o rei sempre usou a sua prerrogativa soberana de criação de moeda, para beneficio da nação, sem crises financeiras de nota. Por outro lado, Del Mar (1895) estabeleceu que o decreto da 'Livre Emissão de Moeda' gerou uma sucessão de pânicos comerciais e desastres financeiros, completamente desconhecidos até então, e que entre 1694 e 1890 [data da nacionalização do Banco de Inglaterra], nunca houve nenhum período de 25 anos sem uma crise financeira em Inglaterra. "
Este último parágrafo deveria funcionar como um soco no meio da cara para todos aqueles que continuam a acreditar que o dinheiro existe no análogo a um vasto lençol subterrâneo de petróleo, e que os seus donos têm toda a legitimidade para o emprestarem — ou o negarem (!) — a seu bel-prazer. São ainda uma infeliz maioria, não menos maioritária do que aquela que, durante milénios, acreditou ser a Terra o centro do Universo. A grande diferença, é que as crenças geocêntricas raramente causavam vítimas; esta crença continua a ferir e a tolher a maioria de entre nós. Os gaspares deste Mundo, devem sentir aquele frenesim que Macbeth sentiu ao interiorizar a possibilidade de levar a cabo, impunemente, o assassinato do rei da Escócia. O que os gaspares esquecem, é a outra face da moeda, contida na previsão das três bruxas: "Nada te ameaçará, enquanto a floresta de Birnam não se erguer e marchar para o castelo de Dunsinane."
Os soldados do exército revoltoso cortaram ramos de pinheiro na floresta, para ocultarem o seu número e aterrorizarem os defensores da desordem vigente. A floresta ergueu-se. Vai voltar a erguer-se, quando o sofrimento das vítimas ultrapassar algum limiar insustentável. Não sei quanto tempo mais vai demorar, porque não sei onde está aquela linha do (in)suportável. Formulo apenas um voto: Desta vez, cravos, só no fim!
Isto é um exemplo daquilo a que os profissionais do marketing chamam técnicas de compensação, dividir para minimizar os impactos psicológicos negativos que o custo de qualquer coisa sempre produz. Acontece que, aquilo que os tais "profissionais" julgam que sabem, já a mim me esqueceu. Ora, se é aritmeticamente correcto fazer aquelas contas em bicas, também o podemos fazer a respeito, por exemplo, dos custos do serviço da dívida pública, previstos no próximo Orçamento do Estado. O resultado é aquele número absurdo do título: duzentos e sete mil e duzentos milhões de bicas. Seguindo o exemplo do inefável diário, da manhã, são 56,7684931507 bicas por dia, para cada português. Porra, que é muito café!
Hoje em dia, e da forma mais obscena possível, muitos portugueses estarão a abandonar a bica e a regressar às mais energéticas sopas de cavalo cansado, do Ti António das Botas. Mais se lhes seguirão, mas facto também, é que tudo o que podemos contabilizar em bicas, podemos fazê-lo apenas em café, tout court. Ora, diz-me o proverbial sô Jaquim, do café da esquina, que aquele rôr de bicas representam cerca de 1,450,435 toneladas de café, durante um ano. Ah! Nada de muito impressionante, só o Brasil produz muito mais do que isso. E no entanto...
No entanto, aquilo que podemos dizer a respeito do serviço da dívida pública portuguesa, podemos também dizer a respeito do conjunto dos países-mártires da Europa, os tais PIIGS. E para este conjunto de países, o serviço das suas dívidas públicas, no seu total, será, para 2013, cerca de 17.405.220 toneladas de café. De acordo com as previsões oficiais do governo dos Estados Unidos, o total da produção mundial, para 2013, será de apenas 8.880.000 toneladas. Menos de metade.
Ora bolas, mas onde é que isto nos leva? A verdade é que já bebi quase meio-litro de café e ainda não cheguei a lado nenhum. A verdade é que, para mim, com o meu percurso pessoal, seria mais natural fazer as contas em barris de petróleo. Não o fiz e por um motivo simples: estaria a pisar uma linha invisível — que os tais "profissionais" não sabem que existe — mas essencial: estaria a fazer o equivalente a passar moeda falsa. E por um motivo simples.
Eis-nos aqui, neste grão de poeira, a que chamamos Terra. No sentido mais essencial, é apenas um motor, accionado à distância pela grande máquina cósmica que é o Sol. E no preciso momento em que escrevo estas linhas, accionado pela nossa estrela, o planeta está a produzir petróleo, e gás natural, e carvão. Acontece apenas que o faz a um ritmo tão lento, que a única forma razoável de encarar algo como os hidrocarbonetos fósseis, é olhá-los como recursos únicos e insubstituíveis. Quando descrevemos os custos do monstro da dívida em toneladas de café, ou de qualquer outro recurso renovável, estamos a comparar os resultados dessa monstruosidade com parte do que a nossa Mãe Comum nos dá, a cada ano. E no ano seguinte, e nos que se seguirem, pelos menos enquanto tivermos algum juízo. Quando consumimos hidrocarbonetos fósseis, estamos, literalmente, a ir ao baú que a Terra encheu, durante muitos milhões de anos.
Acontece que "ir ao baú", é precisamente o que muitos europeus do Sul estão a fazer neste momento. Por isso, e depois de termos colocado o assunto na sua perspectiva correcta, vamos traçar um quadro absurdo: vamos dizer que os Países da União Europeia, no seu conjunto, se apossavam do total de reservas firmes dos 17 maiores produtores mundiais de petróleo, e o vendiam a 100 euros o barril (não faltará muito para lá chegar), apenas para pagar o total do conjunto dos seus serviços da dívida. Quanto tempo é que o baú aguentaria? De acordo com os dados do Eurostat, a resposta é simples: 28,4569992036 anos; o baú chegaria ao fundo antes de 2041. (1)
Nunca é fácil lidar com a loucura. Devo dizer que o gaspar que nos tocou em sorte, me parece essencialmente muito estúpido. É um Verdadeiro Crente, um zelota, e há-de ir para a cama, todas as noites firmemente convicto que está a fazer tudo para nos ajudar a remirmos as nossas culpas, indignos pecadores que somos. Se ele vivesse em Marte, mais não conseguiria do que arrancar-me uma gargalhada ocasional. Mas ele está a destruir este País que é o meu; ele e a sua pandilha estão a destruir este Continente, que também é meu. E por isso, ele está, estão todos, a atingir o ponto em que tudo o que os impeça de continuarem será justificado. Os Povos da Europa vão-se erguer; sempre o fizeram e esta vez não será excepção. Acontece apenas que, quanto mais tempo demorarem, mais difícil será o recomeço, para os nossos filhos.
(1) Estes últimos números estão redondamente errados! Tratei-os como se fossem estáticos, quando aquilo que define a dívida, num quadro de reservas fraccionárias, é exactamente a sua natureza exponencial. O número aritmeticamente correcto será provavelmente inferior a metade, talvez inferior a dez anos. Acontece que eu também tenho os meus limites, e para além dum certo ponto, já não tolero a loucura. Chega!
Se há imagens que valem por mil palavras, esta que se segue, deveria ter um efeito semelhante ao de um estalo na cara. O gasparídeo que temos prepara-se para gastar, durante o ano de 2013, 70 euros e 48 cêntimos em cada 100, no serviço da dívida pública. Os dados são cortesia do Jornal de Negócios, mas não acho, na minha humilde opinião, que coloquem o facto na sua perspectiva real.
Por isso, usei aqueles dados para fazer o graficozinho que se segue. É impressionante como perante aquela montanha de mais de 120 biliões — e é assim que a Grand Larousse indica que devem ser designadas quantidades de 10 levantado a 9, no âmbito da Notação Latina Clássica — até os poucos biliões da Segurança Social e da Educação, fazem figura de amendoins, na sombra duma sequóia.
Perante factos como estes, a reacção humana razoável, consiste em tentar perceber como chegámos a este ponto. No entanto, existe a tentação muito humana de apontar o dedo ao alvo mais fácil de apontar, exactamente como, perante um motor de combustão interna que gripou, existe a tentação de apontar o dedo ao condutor que não terá verificado o nível de óleo no cárter. Será que o fez? A discussão pode tornar-se longa e, sobretudo, bizantina. Muito mais importante é perceber porque é que os motores precisam de lubrificantes e como é que a resposta a essa necessidade evoluiu ao longo do tempo.
"O historiador Alexander Del Mar (1895) escreveu: “Por via de regra, os economistas políticos não se dão ao trabalho de estudar a História do Dinheiro; é muito mais fácil imaginá-lo e deduzir os seus princípios a partir deste conhecimento imaginário.” Del Mar escreveu [esta frase] há mais de um século, mas a afirmação ainda se aplica hoje em dia. Um exemplo excelente deste facto é a explicação dos compêndios económicos, de acordo com os quais, o dinheiro apareceu em transacções privadas, para responder às necessidades convergentes da procura e da troca de bens.
Tal como é mostrado em Graeber (2011), com base em evidência de carácter antropológico e histórico, não existe sombra de provas que suportem esta narrativa. A permuta de bens era virtualmente inexistente nas sociedades primitivas, e, pelo contrário, as primeiras transacções comerciais tiveram lugar no âmbito de sistemas de crédito elaborados; e os muito posteriores sistemas monetários, tiveram origem nas necessidades do estado (Redgeway 1892), de instituições religiosas (Einzig 1966), (Laum 1924), ou de cerimoniais sociais (Quiggin 1949), e não na necessidade criada por relações de troca comercial privadas.
Qualquer debate a respeito das origens do dinheiro, transcende o domínio do interesse académico, porque conduz directamente a uma discussão a respeito da natureza do dinheiro, a qual, por sua vez, tem uma importância crítica na discussão a respeito de quem deve controlar a emissão de dinheiro. Em particular, a narrativa da origem do dinheiro nas transacções entre particulares, iniciada, no mínimo com Adam Smith (1776), tem sido usada como argumento a favor da emissão e controlo privados da emissão de dinheiro. Até há poucos anos, esta tinha assumido a forma de cunhagem privada de moedas a partir de lingotes metálicos. Embora possa existir, por vezes, envolvimento intenso do estado nestas operações, o facto é que, na prática, os metais preciosos sempre se acumularam na posse de privados, os quais os emprestavam a troco de juros.
Desde o século XIII, este sistema baseado em metais preciosos, foi acompanhado na Europa, e depois suplantado, pela emissão de dinheiro bancário privado, mais adequadamente designado por crédito. Por outro lado, a narrativa histórica e antropologicamente correcta a respeito das origens institucionais do dinheiro, é um dos argumentos a favor do monopólio do Estado de Direito sobre a emissão de dinheiro. Na prática, este estado de coisas assumiu a forma, no passado, de emissão de notas e moedas isentas de juros, embora possa também assumir a forma de depósitos electrónicos.
Existe um outro assunto que tende a gerar confusão, normalmente sob a forma da discussão entre “dinheiro real”, isto é, garantido por metais preciosos, e o dinheiro fiduciário. Tal como documentado em Zarlenga (2002), este debate é essencialmente uma digressão, pois mesmo durante períodos históricos baseados em metais preciosos, a principal razão para o alto valor desses metais resultava do seu papel como dinheiro, resultante da ordem legal vigente, e não das qualidades intrínsecas desses metais. Este assunto é particularmente confuso em Adam Smith (obra citada), que assume uma perspectiva primitiva do dinheiro como mercadoria a granel, apesar do facto de, no seu tempo, o então privado Banco de Inglaterra ter já há muito iniciado a produção de dinheiro fiduciário, cujo valor não tinha qualquer relação com os custos de produção dos metais preciosos. Mais importante ainda, como Adam Smith decerto sabia, tanto o Banco de Inglaterra como outros Bancos privados, criavam contas de depósito para clientes de operações de crédito, que não tinham efectuado qualquer depósito em moedas (ou sequer em notas emitidas por esses bancos).
O debate histórico a respeito da natureza e controlo do dinheiro, é o assunto de Zarlenga (2002), trabalho magistral que traça o debate até à Mesopotâmia antiga, à Grécia e a Roma. Tal como Graeber (2011), ele mostra como a emissão privada de dinheiro levou repetidamente a problemas sociais de grande monta, através da História registada, devido à usura associada a dívidas privadas. Zarlenga não adopta a perspectiva comum de usura como a prática de “juros excessivos”, mas sim como a forma de “tomar algo em troca de nada”, pelo mau uso deliberado do sistema monetário, para gerar ganhos privados." Este texto é traduzido de O Plano de Chicago Revisitado. Decidi interromper a tradução neste ponto, por motivos de tempo e espaço, mas também porque a secção que se segue é provavelmente a que tem uma importância mais crítica, no que à narrativa (ainda) dominante diz respeito. A vasta maioria das pessoas continua, obstinadamente, a verificar aquela rejeição da evidência de que John Kenneth Galbraith falou. Voltarei ao assunto em breve. Entretanto, espero que, em sentido figurado, todos nós possamos regressar a Chicago.
Imagine, caro leitor, que a vasta maioria da dívida, pública e privada deixava de existir. Assim, de um momento para o outro (bem, descontando o período de transição, está bom de ver). Utopia, certo? Claro que sim, e por definição: a palavra significa "Terra de nenhum lugar" e em nenhum lugar existe este estado de coisas.
Chamar-lhe impossível..., alto e pára o baile que isso pia mais fino! Mas continuemos no domínio da utopia, e vamos dizer que o Estado, de novo Soberano, aproveitava o processo de re-compra de dívida privada, durante o período de transição, para abordar aquele preço da desigualdade, de que Joseph Stiglitz nos fala — esta parte deve ser entendida como uma oportunidade, não como uma condição sine qua non.
Existem publicações académicas que, pelo menos ao fim de algum tempo, começam a ser qualificadas como seminais e este é um desses casos. Continua a ser apenas uma publicação académica, exactamente como qualquer projecto de engenharia é apenas uma série estruturada de rabiscos numa folha de papel (ou numa resma delas). Ora, se há algo que qualquer engenheiro sabe, é que nada consegue funcionar na realidade física, se não funcionar primeiro no papel. Esta publicação tem aquele toque suave de metal precioso que rapidamente nos habituamos a distinguir do toque tóxico do ouro dos tolos: é essencialmente um Ovo de Colombo. Dois, para ser mais preciso:
Todos os depósitos bancários devem existir na totalidade no cofre dos Bancos onde estão localizados.
Todo o crédito bancário deve ser garantido na totalidade por capital dos seus accionistas, por lucros anteriores, ou por bens tangíveis; pode ser concedido a partir de empréstimos do Tesouro obtidos pelo Banco, os quais, neste caso, verificam também as condições do ponto anterior.
Et voilà! Quem quiser perscrutar aquele demónio que se esconde nos detalhes pode, por exemplo, assistir a esta apresentação de um dos autores. Pela minha parte, estou mais interessado nos aspectos políticos e ideológicos do Ovo de Colombo, e nas condições necessárias para a sua exequibilidade.
Pode ser afirmado que o Plano de Chicago é ideologicamente neutro. Os autores referem en passant aquela oportunidade redistributiva, mas deixam logo bem claro que o seu modelo não exige que seja aproveitada. Acho que os proverbiais marxistas, ou marxistas proverbiais, irão entender este trabalho como uma tentativa de salvar o capitalismo, mas o mesmo foi dito a respeito de John Maynard Keynes. Note-se que ideologicamente neutro é completamente distinto de politicamente neutro. Este trabalho afronta directamente um dos pilares do poder, e exactamente aquele que se revela hoje como dominante. Na realidade, procura criar as condições para um novo começo, antes do ponto em que um rei inglês, demasiado estúpido para conseguir aprender a jogar bridge, quebrou o monopólio tradicional do Soberano, no que respeita à criação de dinheiro.
Do ponto de vista político, o Plano de Chicago, nesta sua versão mais recente, consiste na retoma plena, pelo Estado-Soberano, duma parte da sua soberania, da qual, a vasta maioria nunca abdicou formalmente. Note-se que não é necessário que um qualquer País que o queira levar à prática, mantenha soberania cambial. No entanto, os Países da UE abdicaram explicitamente da soberania exigida pelos dois Ovos de Colombo, e essa abdicação é universalmente considerada estar estabelecida no ponto 1 do artigo 123º do Tratado de Lisboa. Veja-se a sua versão oficial:
Overdraft facilities or any other type of credit facility with the European Central Bank or with the central banks of the Member States (hereinafter referred to as ‘national central banks’) in favour of Union institutions, bodies, offices or agencies, central governments, regional, local or other public authorities, other bodies governed by public law, or public undertakings of Member States shall be prohibited, as shall the purchase directly from them by the European Central Bank or national central banks of debt instruments.
Paul Krugman escreveu no seu blog, há alguns meses que, provavelmente, um advogado esperto encontraria formas de dar a volta àquele assunto. Como este não é o meu caso, quero primeiro referir o ponto 2 do famigerado 123º, para a seguir lançar um repto:
Paragraph 1 shall not apply to publicly owned credit institutions which, in the context of the supply of reserves by central banks, shall be given the same treatment by national central banks and the European Central Bank as private credit institutions.
Eis pois o repto, a todos aqueles, com formação jurídica ou não, que a ele queiram responder — a começar, como não poderia deixar de ser, pelos membros da Pegada — será que eu estou enganado, ou aquilo que o ponto 1 do artigo 123º do Tratado de Lisboa tapa, o ponto 2 destapa? De forma mais explícita ainda: imaginemos um cenário em que, pelo menos uma parte substancial da Banca Portuguesa é nacionalizada. Será que o ponto 2 permite ou não os mecanismos de soberania que o Plano de Chicago necessita?
Apenas os pequenos segredos precisam de ser ocultados. Os grandes, esses, ficam mais protegidos à vista de todos, tornados invisíveis pela incredulidade geral.
– Marshall McLuhan
A vasta maioria dos leitores recordará, vagamente, a primeira das duas Bertas. A versão oficial, diz-nos que aqueles grandes canhões alemães, da 1ª Guerra Mundial, receberam esse nome em honra da matriarca da família Krupp, Bertha Krupp von Böhlen und Albach. No fim de contas, eram o epítome da industria pesada alemã, e a empresa Krupp era o epítome dessa indústria.
Não devemos nunca, contudo, eliminar o génio humano em qualquer equação que envolva a espécie. Em O Meu Século, Günther Grass conta-nos uma história diferente e em pouco menos de duas páginas de puro génio, conta-nos a História de setenta e cinco anos da Alemanha, até aqueles anos fatídicos de 1914-1918. A Dicke Bertha de Grass era, afinal, a Berta Gorda, mulher dum operário da Fundição Krupp. Não era por mal, todos gostavam da Berta, amiga dos seus amigos, sempre pronta a ajudar. ...Que não se vivia nada mal, lá no bairro operário...". Por vezes, a fuligem da chaminé estragava a roupa, estendida a secar, mas era também nessas ocasiões que a Berta Gorda melhor revelava o seu carácter amistoso.
Então um dia, a Fundição recebeu a encomenda do tubo de aço vazado mais avantajado que já havia sido produzido, e maquinado com um grau de precisão que não deixava dúvidas quanto ao seu propósito. Perante as suas proporções, os operários da Fundição lembraram-se da Berta, assim, anafada; estava criada a alcunha e não era por mal, era por amizade. Era trabalho e assegurava o comer nas mesas, lá no bairro operário.
Depois..., bem, depois, o Ludendorff foi buscar o homem da Berta Gorda, mas quem quiser saber o resto que leia o livro. Günther Grass conta-nos magistralmente, como a coesão social, engendrada pelo Estado Social de Bismarck, produziu as massas disciplinadas que se precipitaram sobre as trincheiras de Verdun.
Ora, vem isto a propósito do mais recente episódio da nossa tragi-comédia colectiva: A Refundação. A vasta maioria dos comentadores interroga-se a respeito da semântica implícita. Foi nestas páginas que a verdade foi desvendada: Passos Coelho sofre de palato bífido; é assim a modos como um anti-texano: é virtualmente incapaz de produzir sons nasalados. O que ele quer mesmo é refoder.
Este é o momento em que as máscaras caiem. A nossa troika caseira atingiu aquele ponto de liberdade extrema em que já não há nada a perder. Exactamente como diria o(a) Bobby McGee. Esquecem-se que os portugueses estão a atingir rapidamente o mesmo ponto de liberdade: as nossas próprias "Bertas Gordas" estão a ficar mais esquálidas, de dia para dia. Algumas ainda acham que andaram a viver acima das suas posses, durante anos. São cada vez menos. Estão cada vez menos coesas.
Existe no entanto um aspecto, em que as nossas Bertas-cada-vez-mais-magras continuam manobráveis e esse tem a ver com aquele efeito de que McLuhan nos falou: como pessoas intrinsecamente sérias que são, continuam a acreditar na sacralidade das dívidas; como pessoas intrinsecamente de bom-senso, continuam a acreditar que a dívida foi criada porque os credores nos emprestaram uma parte do que tinham em caixa, em vez de ter sido criada, literalmente, ex nihilo, literalmente a partir do nada. Como pessoas ingénuas que são, continuam muito preocupadas com os 60 cêntimos que saem dos seus impostos, para pagar a actividade parlamentar que temos — incompleta, limitada, de intensidade mínima, democrática — e ainda não conseguem preocupar-se com os milhares de milhões do serviço da dívida.
Será que alguma vez serão capazes de ver para além daquele muro invisível que colocaram ante os seus olhos? Acho que a História é ambígua a este respeito. Talvez sejam capazes de reagir como Islandeses; o mais provável é que um qualquer "...comam brioches..." mais destrambelhado, leve as nossas Bertas à violência extrema. Esse será o dia em que já não vale a pena perguntar o que há de especial na proverbial palha que quebra as costas do camelo. Não hã nada de especial, é apenas uma em demasia.
Freedom's just another word for nothing left to lose, Nothing don't mean nothing honey if it ain't free. And feeling good was easy, Lord, when Bobby sang the blues, You know feeling good was good enough for me, Good enough for me and my Bobby McGee
O espesso jornal dos sábados, deu a este assunto menos relevo do que seria de esperar a respeito dum campeonato de juniores em futsal. O relatório da World Wind Energy Association é pouco mais do que uma enumeração de algumas alegres andorinhas que, como seria de esperar, não fazem nenhuma Primavera. Vejamos apenas duas: o limiar dos 250 GWatts de potência eólica instalada, em todo o Mundo, representa algo menos do que 5% do total disponível – e estou-me a referir àquilo que fazemos hoje, isto é, à potência eólica disponível a cerca de 10 metros do solo; se considerássemos toda a coluna atmosférica, o total seria cerca de 15 vezes maior, mas isso não é sequer logicamente concebível. Portugal aparece num impressionante 10º lugar, mas ainda assim, o total de energia eólica produzida neste País está em cerca de metade do limite de Ummels.
Vejamos no entanto, outra perspectiva sobre o assunto: a potência eólica instalada, per capita, neste País, é a 2ª maior em todo o Mundo e a curta distância do líder absoluto, a Espanha. Arnold Schwarzenegger, enquanto governador da Califórnia, costumava considerar-nos como a referência a atingir ou superar. Nada que impressione os espessos jornalistas sentados, mas a imagem a seguir não poderia ser mais explícita. É claro que isto não apaga o lamentável assunto das rendas energéticas – que o púbico chairman da EDP confunde ou confundia com as compensações autárquicas pela passagem de linhas de alta-tensão – nem os expectáveis compadrios em que a nossa sociedade é farta, mas também não é isto que apagará a nossa andorinha.
No entanto, depois de obter este gráfico, fiquei algum tempo a olhar para ele, porque aqueles seis países constituem óptimos exemplos dum paradigma essencial, a saber, qual é, no presente o "retrato" da incorporação da energia no produto? Esta pergunta tem que ser enquadrada: a energia é a condição primordial para a existência de grupos sociais organizados. Om Mani Padme Um, e assim falava Zaratustra, etc., etc. Temos que ser mais explícitos. Em A Sociedade da Pobreza, John Kenneth Galbraith cita uma estatística impressionante: pelos finais dos 1950's, princípios dos 1960's, uma família de camponeses indianos, vivendo nas margens das grandes florestas, em regressão, gastava em média, cerca de 18 horas diárias para responder apenas a duas necessidades básicas, água potável e lenha para cozinhar. É mais ou menos óbvio que, naquelas condições, apenas o modelo da família multi-geracional alargada, pode sobreviver. Não é disto que estou a falar.
Não foi por acaso que todas as civilizações clássicas ocorreram na margem de grandes rios. Era aí que as populações encontravam os excedentes daqueles dois bens essenciais, capazes de os libertarem da necessidade diária prover a sua sobrevivência apenas até ao dia seguinte, literalmente. Quando digo que a energia (e a água, não esquecer) é a condição primordial para a existência de grupos sociais organizados, estou a falar de algo diferente. Costumamos chamar-lhe Civilização.
Ora um dos problemas da Civilização, é que os seus membros tendem a encarar estas benesses e outras como factos adquiridos. Tal como o registo e o acompanhamento das enchentes do Nilo era entregue apenas a uma casta particular de funcionários do Faraó, estes assuntos são hoje considerados como assunto de especialistas. São questões de cidadania, e são questões de sobrevivência, lá iremos. Para já, a imagem actual é a que se seque.
Que os americanos são uns gastadores empedernidos, não constituirá grande surpresa. É no entanto óbvio, que, factores de escala à parte, estamos perante dois retratos distintos: cinco países apresentam qualitativamente o mesmo "retrato"; a China apresenta uma imagem radicalmente distinta. Todos os dados são, directa ou indirectamente, do Banco Mundial e a série de dados chinesa tem um ponto a menos, visto que a informação relativa a 2010 não está disponível. O KWatt.hora é a energia absorvida por dez lâmpadas de 100 Watts que estejam ligadas durante uma hora; o GWatt.hora é o mesmo, multiplicado por 1 milhão. Se quisermos encontrar um exemplo, uma imagem semelhante ao padrão das hoje potencias emergentes, temos que olhar para um fóssil vivo: a Austrália.
Até aos choques petrolíferos dos 1970's, e à crise dos sulfatos e das chuvas ácidas, dos 1980's, este era o retrato de todos os países desenvolvidos. Havia um dogma: por cada unidade monetária, dólar, escudo, franco, etc., que se acrescenta ao produto, a incorporação de energia aumenta; numa percentagem ínfima, mas aumenta, sempre. Teve o destino de todos os dogmas; a situação australiana é única e o seu interesse é meramente o de ilustrar o que já não é: estado-continente em que mais de 80% da população vive a menos de 40 quilómetros do mar, sem conseguir sequer, devido à muito baixa densidade populacional, constituir faixas contínuas de povoamento costeiro, a Austrália tem problemas (e soluções também) de transporte únicos, que lhe asseguram um lugar único. Também no que respeita à extrema sensibilidade do consumo energético às variações negativas do produto. Um fóssil. Menos hoje do que há cinco anos atrás, mas algo que apenas interessa aos australianos.
Para os países emergentes, a incorporação da energia no produto apresenta aquele "andamento chinês". Reflecte o facto de a maioria da sua população ter ainda níveis de rendimento muito baixos e muito pouco acesso a bens de energia; reflecte o facto de o seu desenvolvimento ser ainda, em grande medida, baseado em trabalho manual. Os países desenvolvidos aprenderam a tornar o seu PIB muito razoavelmente independente da incorporação de energia; aprenderam a realizar ganhos de eficiência qualitativos (!), tanto nos tempos bons, como – em menor grau, claro – nos tempos maus. Ficaram aprisionados em patamares quânticos incomunicáveis.
Quando se fala nestes assuntos, a gastação americana vem sempre à baila. Não é que não haja motivos para isso, mas deve ser dito que, em menor grau, estamos também a olhar para as diferenças impostas por outro estado-continente, com distâncias médias muito maiores do que as europeias ou japonesas. Muito mais importante do que isso, estamos a olhar para a acção -- e para as limitações -- do mais progressista de todos os agentes históricos do Mundo pós-guerra: o consumidor; estamos a olhar também para a divisão em classes desse agente histórico: os de primeira, os de segunda (os mais inteligentes), os de terceira, e os de quarta categoria, nós próprios.
Os consumidores, enquanto agente histórico, são o alvo de todos os gasparídeos. Não vale sequer a pena falar em impulso suicidário, tais bichos não o compreendem. O que importa perceber é que a nossa libertação da agressão em curso, passa pela capacidade de franquear aqueles patamares quânticos. Se não o fizermos, mais vale ler Galbraith, e começarmos a pensar na nossa divisão de tarefas familiares para o futuro.
Mitt Romney — Já olhou para o seu Fundo de Reforma? Barack Obama — Não olho para o meu Fundo [de Reforma]. Não é tão grande como o seu.
A política americana tem destas coisas. Aquela troca de palavras entre os dois candidatos, durante o segundo debate presidencial, pode vir a revelar-se como o momento definidor, que estabelece quem será o próximo Presidente. Num sentido que, receio, poucos eleitores americanos sejam capazes de apreciar, este é talvez o momento mais definidor que algum político foi capaz de protagonizar, durante o novo século.
Se alguém tiver dúvidas a respeito da qualidade do pensamento contemporâneo português, que consulte, por exemplo, o debate a respeito duma eventual saída do euro, aqui e aqui (o segundo link está disponível também no primeiro texto). Mais do que os argumentos presentes no debate, foi uma única frase que me marcou. Esta:
No capitalismo contemporâneo, o dinheiro serve fundamentalmente como veículo de informações económicas e o crédito serve para relacionar a produção actual com a produção futura, o que nada tem a ver com especulação ou com economia de casino. Quem raciocinar nesses parâmetros fá-lo à sua custa, e o erro de análise é pago com a incompreensão dos mecanismos económicos.
No âmbito estrito do debate, esta afirmação poderia ser usada contra as conclusões dos que a produzem. Não é essa a minha intenção, pois pretendo, sobretudo, colocá-la no contexto da troca de mimos que citei inicialmente.
Hoje em dia, o demónio de Maxwell é entendido como sendo, essencialmente, uma construção da Teoria da Informação. Que as mesmas ideias tenham demorado tanto tempo a fazer o caminho entre a Física e a Economia, revela apenas o atraso do pensamento económico, assunto que só mesmo os Gaspares deste Mundo conseguem fingir que não existe. Não pretendo intervir naquele debate, repito, mas os autores daquela afirmação lapidar não parecem ser capazes de a integrar com o facto de "o capitalismo" ser uma expressão inócua: existem múltiplos capitalismos, a maior parte com génese nas diferenças entre diferentes países, outras, com génese no facto de nem todos esses múltiplos capitalismos terem os mesmos interesses.
Se tivesse nascido na Alemanha, ou trabalhado em Frankfurt o tempo suficiente para isso, o senhor Bagão Felix sobrescreveria provavelmente este estudo terrífico; assim, fala apenas em "napalm fiscal". O mesmo poderia ser dito do senhor Barack Obama. Se as vítimas do actual assalto austeritário não forem capazes de fazer estas distinções, estarão a auto-condenar-se a um (ainda) maior nível de violência: existem duas economias, uma é real, a outra é financeira; só os habitantes da segunda é que se preocupam muitos com os respectivos Fundos de Reforma. Os outros, produzem, e confiam nos contratos sociais.
Só os habitantes do Planeta Finança é que têm pesadelos a respeito da inflação; os outros sabem que é apenas mais um custo de produção. A consequência imediata para todos nós, que não habitamos no tal planeta, é que estamos a ser alvos duma agressão. Violenta e suja. Muito suja. As mais-valias financeiras realizadas nos últimos meses pelo estado alemão, são tão sujas como o ouro nazi que pagou o volfrâmio português.
O avô do Hans disse-lhe que não conhecia pessoalmente nenhuma das vítimas de Auschwitz. É falso! Nem que o grave ancião e os seus contemporâneos totalizassem 500 milhões de almas, estatisticamente, todos teriam conhecido pelo menos um dos seus concidadãos a quem foram arrancados os anéis, as alianças, até as próteses dentárias, para serem fundidos e contrastados pelo ReichBank, antes de acabarem no alforge do António das Botas. O Hans diz hoje que não conhece nenhum dos idosos que, na Grécia, em Portugal, na Espanha recebem uma sentença de morte, estatisticamente incontornável, cada vez que um serviço social é austerizado, para que investidores institucionais paguem ao herdeiro do ReichBank o privilégio de deter títulos de dívida pública imunes à inflação.
Do not go gentle into that good night. Rage, rage against the dying of the light.
Dylan Thomas — Do not go gentle into that good night
Uma das maravilhas da condição humana, é que houve sempre um génio que disse as palavras certas, prontas a servir como arma, quando a necessidade o exige. O Hans tem que saber que não nos deixaremos ir num suave entardecer. O Hans tem que saber que nos estamos nas tintas para o facto deles serem muitos, e nós sermos poucos. O Hans tem que saber que, no final do dia, aqueles que lutam pela sua própria vida e pelo futuro dos seus serão sempre incomensuravelmente mais do que todos os assassinos juntos.
Com um brilhozinho nos olhos Dissemos, sei lá Tudo o que nos passou p'la tola
Sérgio Godinho — Com um brilhozinho nos olhos
Foi com o brilhozinho nos olhos, do Sérgio, que encarei as alternativas em congresso. E o caso não é para menos: se dúvidas houvesse, este evento chegaria para demonstrar que este Povo tem mais, muito mais, do que a massa crítica necessária para superar uma das maiores crises da sua História.
Soube-me a pouco, e estou certo que não foi só a mim. Não adianta falar em "esquerdas", enquanto não existir uma alternativa política, capaz de se apresentar como viável, para aquela vasta maioria que encheu as ruas e as praças, no passado mês de Setembro. A cópula do PS não é capaz de dizer "...o rei [da austeridade] vai nú"; veja-se a distinção semântica de Ana Gomes entre renegociar e denunciar. A cópula do PS não consegue afastar as suas próprias aspirações (perfeitamente legitimas) aos altos cargos do funcionalismo europeu, do caminho da regeneração do País.
Em vez duma, podiam existir várias. Para já e por mais esforçadas que se revelem, o resultado final está no título.
Os Berlinenses chamam-lhes "Os Franceses". Poucos terão retido os nomes de família, aliás, sem nunca perderem o poder e a influência que o seu número reduzido não pareceria destinar-lhes. "Os Franceses" são os descendentes dos Huguenotes fugidos de França, após a revogação do Édito de Nantes.
Foram instrumentais em todos os turbilhões europeus desde o fim do século XVII: apoiaram Frederico Guilherme da Prússia contra as pretensões hegemónicas da Suécia, apoiaram-no na primeira divisão da Polónia; apoiaram um Jüncker prussiano de boa cepa, quando este iniciou a reunificação da Alemanha, a partir de 1870. Otto von Bismarck parecia ter o zelo religioso que os Calvinistas consideram como iluminado e única fonte de legitimação do poder. Depois, Bismarck revelou-se aquilo que hoje nos aparece quase como um contradição em termos, um conservador inteligente. A unificação da Alemanha foi feita com base no que ficou conhecido como Capitalismo Renano e pelo dealbar do Estado Social. Os Franceses nunca perdoaram a traição, e passaram os últimos anos do século XIX a conspirar contra Bismarck; conseguiram os seus intentos e conseguiram confirmar a previsão do próprio: "A destruição chegará vinte anos após a minha partida". Quase mês por mês, a Europa foi mergulhada no matadouro da Primeira Guerra.
É, de alguma forma, irónico, que a mais grave crise que a Europa conhece, desde o fim da 2ª Guerra, seja alimentada pelo zelo religioso profundo, remanescente das Guerras da Religião. No entanto, não conseguimos compreender o impacto desse zelo, sem referir um dos factos mais silenciados da História do séc. XX.
Os "Alemães dos Sudetas" não foram uma invenção de Adolfo Hitler. Existiam grandes comunidades de alemães na Boémia-Morávia; um deles era Oskar Schindler. Essas comunidades eram ainda maiores na Silésia, e, mais para o Norte, do Golfo de Keil até ao Golfo de Riga, toda a margem Sul do Báltico tinha populações germânicas desde os tempos da Liga Hanseática.
Em termos puramente numéricos, o deslocamento das populações germânicas, em face do avanço do Exército Vermelho, foi a maior limpeza étnica, num século notório por factos semelhantes. Quase 17 milhões de alemães foram deslocados. Muitos mais até do que as vítimas da "Grande Permuta", originada pela independência da Índia Britânica; Incomparavelmente mais do que as vítimas da Nakba ("A Grande Catástrofe") palestiniana. Os seus efeitos, contudo, não foram proporcionais aos números.
Iniciado nos finais de 1944, princípios de 1945, o movimento começou com a deslocação das povoações germânicas do Báltico. A administração civil alemã nunca entrou em colapso, nem mesmo no meio do "Crepúsculo dos Deuses" hitleriano; nunca foram criados campos de refugiados, semelhantes aos campos do desespero palestiniano. Os deslocados foram reunidos em campos de trânsito, na região de Hamburgo, e rapidamente dispersos pelas regiões rurais de toda a Alemanha, aquelas onde ainda existiam alguns excedentes alimentares, capazes de os sustentar. Após o fim das hostilidades, os "Quatro Poderes" repetiram o processo de dispersão; apenas os últimos se acumularam nos Lander da Prússia.
Os soviéticos justificaram, durante décadas, o Muro de Berlim e a sua presença militar maciça na ex-Alemanha de Leste, com os riscos do "revanchismo alemão". A expressão designou muito mais a má consciência dos seus autores do que as realidades sociais profundas do sentir alemão. "...designou...", pretérito. Não foi por acaso que Bona foi escolhida como capital da ex-Alemanha Ocidental. A sua localização, nas margens do Reno. Os Renanos sempre desconfiaram "daqueles prussianos, perpétuos escravizadores de eslavos". Da forma mais irónica que é possível, foi a queda do Muro que constituiu a grande oportunidade histórica dos Franceses.
Eu paguei a Hitler (link acima) não é um livro agradável de ler. Fritz von Thyssen negou, depois da Guerra, ter autorizado a publicação das suas memórias. Mas para além do testemunho pessoal, o ponto mais notório, impensável à época, é a proposta da divisão da Alemanha em duas. Neste sentido, não só se veio a revelar premonitório, como, mais importante ainda, extremamente actual.
Estamos hoje a viver o terceiro grande assalto alemão à Europa, no prazo dum século. "Imperialismo" é uma palavra sempre à mão de semear, mas soa de forma estranha, quando reparamos que os seus altos-sacerdotes, e não só pelas suas motivações religiosas, estão mais próximos dos ayatollas iranianos do que do "Não voltaremos a Canossa" de Bismarck. Não sei que nome lhe dar, e é irrelevante. Desde o início deste século, esta Alemanha está claramente a viver acima das nossas posses. E não é por acaso que tantos dos seus quadros de topo tenham tido origem no aparelho de estado da República de Pankow. Afinal os soviéticos tinham razão: os perigos do revanchismo alemão eram bem reais, eles apenas identificaram erradamente as suas origens.
Os Huguenotes da Prússia detêm hoje um poder enorme. Parte desse poder é de origem difusa, resultante do domínio das Internacionais Financeiras em tanto do Mundo; parte é estritamente europeu e não se constrói sem traidores. As declarações duma de-putada do PSD, hoje mesmo, durante a discussão das moções de censura, na AR, são quase demasiadamente más para terem ocorrido. Ocorreram. Foram aplaudidas. Numa República menos a-bananada, seriam motivo mais do que suficiente para que o Primeiro Magistrado da Nação sobre elas se pronunciasse e sem ambiguidades. Não acredito que essa tomada de posição venha a ocorrer. No fim de contas, o mais certo é que Aníbal Cavaco Silva também esteja a ser pago pela Troika.
Em qualquer transformação, ocorre sempre um ponto em que nada parece acontecer e em que tudo muda. Os anglo-saxónicos chamam-lhe "tipping point". A minha tradução fica aquém do sentido original, e por isso fui à procura duma imagem que encerrasse as 998 palavras que me faltam. Estamos, em Portugal e na Europa, a atingir aquele ponto. Estou certo que o emulo de Sísifo que, na imagem, empurra a pedra pela encosta acima, não o consegue antever. Albert Camus adiantou-se à resposta por uns meros dois anos. Não temos hoje qualquer desculpa para a ignorar e para eleger a revolta como única resposta ao absurdo aparente da condição humana: o ponto de viragem (de inflexão, de min-max, de max-min, etc., etc.) é o ponto em que tudo de essencial se define. Há quem pense que este foi o livro mais importante do século XX; há quem pense que chegámos ao dia de hoje porque os líderes das duas super-potências foram educados nas suas conclusões. O que ainda ninguém nos ensinou, foi como lidar com o impulso suicidário das elites de baixa qualidade que, por acidente histórico, estejam no poder quando aqueles pontos se aproximam. Isto apenas faz com que a responsabilidade recaia sobre nós todos, os soberanos. O Povo.
As declarações do Borges que temos, são apenas o episódio mais recente dum facto impensável ainda pelos finais de Agosto: está criado uma unanimidade quase total contra o actual governo. Não nos iludamos, muitos querem apenas que algo mude para que tudo fique na mesma. Entre os adeptos do "refrescar a coligação" e o "[...]gerar riqueza, para pagar dívidas[...]" (sic), do TóZé Seguro, a única diferença são as caras dos protagonistas. Para os restantes, a vasta maioria, este é o ponto de viragem, que define se algo de essencial muda ou se tudo permanece como está. O tempo do NÃO! está rapidamente a esgotar-se, e pelo seu próprio sucesso. A superação faz-se sempre pela afirmativa. Ou então não se faz. De forma claramente Bórgica, mesmo que indubitavelmente mais polida, Bernard-Henri Lévy fez o diagnóstico certeiro da situação. O mais importante — prova provada de que os mestres do pensamento servem sempre para alguma coisa — é que Bernard-Henri Lévy traçou o próprio quadro para a superação dialéctica do dilema que enuncia.
O filósofo francês estabelece a federalização da dívida dos Estados-membros como algo semelhante à Ilha dos Amores, de Camões. A recompensa pelos trabalhos e perigos atravessados; tem razão. Está redondamente enganado. No âmbito da sua própria narrativa, é apenas um Borges letrado. Nunca os Povos da Europa irão aceitar a sua narrativa, sua, da sra. Merkel, de todos os neo-liberais austeritários que o Inferno pariu, ou há-de parir. Continua a ter razão: ou a Europa é capaz de federalizar as dívidas públicas dos seus Estados-membros, ou não tem futuro. Não poderia estar mais errado: esta é uma condição de partida, nunca um ponto de chegada, num futuro mais ou menos vago.
Aquilo que o sr. Lévy não é capaz de fazer, pelo menos não mais do que o nosso inefável e (in)Seguro TóZé, é reconhecer — e dizê-lo — que é impossível pagar a dívida; nem mais nem menos do que satisfazer o pedido do Grão-Vizir. Toda a dívida, num quadro de reservas fraccionárias e de criação monetária pelo crédito, é impossível de ser paga: cresce sempre, exponencialmente. Até a alemã; especialmente a alemã, com os enormes Core Tier I ratios dos seus bancos (barbarismo infame que designa o número de vezes que o montante total dos depósitos dos seus clientes é multiplicado, para atingir o total de créditos concedidos, e sobre o qual são cobrados juros).
O ponto de viragem será atingido quando um Povo da Europa conseguir a coragem ingénua da criança que foi capaz de exclamar "Mamã, o Rei vai nú...", enquanto os (i)(r)responsáveis adultos gabavam as plumagens do manto que não existia. Vejamos as consequências.
Um montante muito apreciável da dívida pública total, dos países da Europa, é detida por credores institucionais. Em boa medida, por outros Estados-membros; Portugal detém parte da dívida grega, como até os gregos detêm parte da dívida irlandesa. É por tudo isto que é incontornável declarar uma moratória a todo o serviço da dívida; e por maioria de razão, essa moratória irá funcionar para o sr. Bernard-Henri Lévi e para todos os loucos suicidários deste continente como na velha maldição chinesa "Que todas as tuas preces sejam atendidas": a dívida pública europeia vai ser federalizada, duma forma ou doutra.
Depois, é preciso que estejamos preparados para lidar com aquele impulso auto-destrutivo para o qual Jared Diamond nos avisou; para a repetição das chantagens execráveis a que os gregos foram sujeitos no início do Verão, e ainda mais. Nunca gostei muito do escudo, mas se tiver que ser, que se dane. Não faço ideia que nome é que os catalães vão dar à sua nova moeda.