Não terás outros deuses ante a Minha face. Exodus 20 2-17
As necessidades dum povo nómada, vivendo na margem dos grandes desertos, são simples e limitadas. Algumas direcções, apenas; para onde conduzir os rebanhos; onde encontrar água e locais para pernoitar. As necessidades dum estado moderno têm uma complexidade que seria incompreensível para os seus antepassados, contudo, podem ser enunciadas com a mesma simplicidade: "A quinta colectiva fornece o Estado e só depois o povo". Foi assim que os activistas do partido comunista da Ucrânia enunciaram e difundiram aquilo a que chamaram «O Primeiro Mandamento de Stalin», no início da década de 1930.
Em "O Arquipélago de Gulag", Alexander Solzhenitsyn cita um velho provérbio russo: "Não devemos olhar o passado. Aquele que olha o passado perde um olho." e acrescenta logo a seguir "E aquele que o esquece perde os dois". A história dos povos é feita destes esquecimentos selectivos; a sua memória colectiva tem, em grande medida, o propósito de permitir aos sobreviventes superarem os traumas dos eventos que eles próprios viveram, ou aqueles de que ouviram falar. A memória colectiva da Europa impõe hoje, como condição sine qua non de pertença, o reconhecimento formal do Holocausto. Os europeus passaram algumas décadas em tratamento oftalmológico intensivo, para, em boa medida, acabarem com óculos de lentes espessas e convenientemente rosadas. Convenhamos, a imagem industrial do Holocausto nazi, é a perpetuação duma falsidade. É a tentativa de perpetuar o mito da "competência técnica alemã", a realidade do genocídio foi essencialmente artesanal, sem ser menos assassina por isso. Começou muito mais cedo do que a versão oficial regista. Os Ucranianos chamaram-lhe Holodomor, ou extermínio pela fome.
Porque eu, o Senhor vosso Deus, sou um Deus invejoso e trarei os crimes dos pais sobre os seus filhos e os filhos dos seus filhos, até à terceira e quarta gerações ibidem
Os camponeses da Ucrânia tinham aceite o estado bolchevique, porque este lhes tinha permitido libertarem-se dos grandes proprietários tierra-tenientes. Mas de repente tinham passado a ser inimigos de classe, kulaks ricos (em muitos casos, o seu capital reduzia-se a um porco ou uma vaca) e alvos a destruir.
Foram erigidas torres de vigia nos campos para impedir que os camponeses tomassem qualquer coisa para si. Só na região de Odessa, foram construídas mais de setecentas torres de vigia. As brigadas [de activistas do partido comunista] iam de casebre em casebre, mais de cinco mil membros nas suas fileiras, apoderando-se de tudo o que conseguissem encontrar. Os activistas usavam, como recordou um camponês, «longas varas metálicas para procurar em cavalariças, pocilgas, fogões. Procuravam por todo o lado e levavam tudo, até aos mais ínfimo grão». Atravessavam as aldeias «como a peste negra» gritando «Camponês, onde está o teu cereal? Confessa!». As brigadas tomavam tudo o que se parecesse com comida, incluindo o jantar sobre o fogão, que eles próprios comiam. Como um exército invasor, os activistas do partido viviam da terra, tomando o que podiam e comendo até estarem cheios, obtendo poucos resultados do seu trabalho para além da miséria e da fome.Talvez devido a sentimentos de culpa, talvez devido a sentimentos de triunfo, humilhavam os camponeses onde quer que fossem. [...] Mulheres apanhadas a roubar numa quinta colectiva foram despidas, espancadas e arrastadas nuas através da aldeia. Numa aldeia, a brigada embebedou-se no casebre de um camponês e os seus membros violaram, à vez, a filha deste. As mulheres que viviam sozinhas eram rotineiramente violadas, de noite, sob pretexto de confiscação de cereais... e, de facto, depois de violarem os seus corpos, levavam-lhes a comida. Este era o triunfo de Stalin e do seu Estado.
Timothy Snyder — Bloodlands
Um deus invejoso, sem dúvida. Pela primeira vez na história, no meio duma fome generalizada, as cidades sobreviviam melhor do que os campos que as rodeavam. Invejoso e sádico, mas cheio de imaginação. Os refugiados camponeses não estavam de facto a pedir pão, mas sim, envolvidos num complot contra-revolucionário, oferecendo-se como propaganda viva para a Polónia e outros estados capitalistas que desejavam desacreditar as quintas colectivas. À medida que o sucesso da grande reforma socialista se aproximava, os seus inimigos, levados ao desespero por esse sucesso, imolavam-se pela fome, para o tentarem sabotar.
Mas mostrarei o Meu amor àqueles que seguirem a Minha palavra e obedecerem aos meus mandamentos. idem ibidem
Tal como o velho provérbio russo nos lembra, há sempre quem pense que os demónios ficam guardados em segurança nos armários onde os tentamos trancar. Mas eles teimam em regressar, não é verdade, Vladdy?. Ou talvez os cidadãos de países democráticos sejam de facto idiotas que odeiam aquilo que têm. Ou talvez aquele "amor" dos deuses sádicos dure pouco. A verdade simples é que temos sempre o olho da mente para usarmos desde que estejamos dispostos a fazê-lo. E a verdade ainda mais simples, é que, dos dois grandes assassinos do século XX, Adolfo Hitler nunca enganou ninguém, nem nunca pretendeu ser outra coisa senão um monstro racista; até os seus propósitos genocidas estavam já razoavelmente enunciados nas leis da "higiene racial", da eugenia e da eutanásia. O outro, embrulhou-se no manto da "libertação" — categoria escatológica distinta da "liberdade", note-se — e do "progresso social"; e da "felicidade dos povos". Será que estes mantos desculpam, de alguma forma os seus seguidores? Ou será apenas a crença naquela promessa?
O conhecimento dos crimes nazis levantou a pergunta inevitável, isto é, "O que é que os alemães sabiam?". O péssimo espectáculo recente do Vladdy torna a outra pergunta de novo urgente: "O que é que os comunistas sabiam?". Desconfio que vai ficar tão mal respondida como a anterior, mas não é menos incontornável por isso.