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“Mas então, lá no teu país vocês têm um comunismo?”, perguntou Primitivo.
“Não. É coisa da nossa República”, respondeu Robert Jordan.
“Para mim, tudo pode ser feito pela República”, retorquiu Andrés. “Não
é preciso mais nada”.

Ernest Hemmingway — in «Por quem os sinos dobram»

Pelo final de 1975, Otelo Saraiva de Carvalho (já comandante do Copcon), foi à Suécia participar num evento organizado pelo Partido Social-Democrata Sueco. No regresso, e com aquela ingenuidade que o caracteriza, contou um episódio ocorrido durante a sua estadia. Um dos seus anfitriões perguntou-lhe “Ainda não conseguimos compreender o objectivo da vossa revolução. Afinal, o que é que vocês pretendem?”, e ele respondeu “Nós queremos acabar com os ricos, pois claro!”, ao que o outro respondeu “Pois nós aqui queremos acabar com os pobres”.

Tanto quanto me consigo aperceber, naquele momento histórico em particular, aquela conversa poderia ter ocorrido em qualquer país da Europa além-Pirenéus, mas foi extremamente adequado que tenha ocorrido na Suécia. No início do século XX, a Escandinávia era uma região historicamente pobre, como Tony Judt a descreveu, «[. . . ] uma região de florestas, herdades, indústrias de pesca e uma mão-cheia de indústrias primárias, quase todas na Suécia». No meio duma população constituída maioritariamente por pequenos agricultores, madeireiros e pescadores, os sociais-democratas suecos compreenderam que, se se mantivessem agarrados aos dogmas do movimente socialista do século XIX, com a sua aversão ao rural,* os seus eleitores “proletários”, mesmo que associados a alguma da classe média urbana (pouco significativa, na altura), iriam assegurar-lhes uma minoria permanente.

A Escandinávia e a Suécia em particular não seguiu o caminho do desespero, trilhado por outras sociedades na Europa de entre as guerras. Naquela passagem fabulosa da Espanha de Hemmingway, os guerrilheiros do grupo do Pablo e da Pilar questionam o dinamitista Inglés (que eles sabem perfeitamente que é americano) a respeito do seu país, e, quando ele descreve o sistema de “homesteading”† no seu estado natal do Montana, ficam extasiados. É sem surpresa que tal estado de coisas tivesse aparecido a camponeses espanhóis sem-terra como um paraíso comunista. Por toda a Europa Central e do Sul, os camponeses amargurados foram presa fácil para os fascistas e outros extremismos. A sua cultura católica tornava-os atreitos a deixarem-se conduzir por quem quer que se afirmasse como detentor da verdade e capaz de dar todas as respostas. Os não menos deprimidos agrários, madeireiros, caseiros e pescadores do extremo norte estavam marcados pelo individualismo da sua tradição protestante; os sociais-democratas suecos e escandinavos em geral, não só não os hostilizavam, como apoiavam as suas cooperativas. Em Saltjöbaden, em 1938, representantes dos patrões suecos e dos trabalhadores assinaram um pacto que iria formar a base das relações sociais do país. Foi também nessa altura que Orwell escreveu “Homenagem à Catalunha”. Isto não encerra o capítulo “Acabar com os ricos”. A liturgia do ódio é muito antiga na cultura europeia, mas, na Esquerda em particular, essa liturgia, desde Babeuf em finais dos 1790, tem sempre duas constantes. Uma é aquela divisão entre a cidade “avançada” e o campo “atrasado”; a outra é o facto de se dirigir sempre a uma minoria. Em The Good Society, Galbraight escreveu que o “Contrato com a América”, o programa transformativo dos conservadores americanos, em 1984, era reminiscente do “Manifesto Comunista”, de 1948. No estilo, na estrutura lógica, inclusive no facto de se dirigir a uma minoria de menos de um quarto dos americanos. O original dirigia-se a um sexto dos britânicos, a sociedade mais industrial da época, e a menos de um décimo dos alemães e dos franceses. Metade destes números no resto da Europa.

As sociedades europeias de entre as guerras eram ainda sociedades agrárias em grande medida. Em 1938-1939, com cerca de 5% da sua população ocupada na agricultura, a Grã-Bretanha era o único país a respeito do qual se podia dizer ter completado a transição para uma sociedade industrial; não muito distante, vinha a Bélgica, com cerca de 8% da sua população ligada à agricultura, logo seguida pela Checo-Eslováquia com 10% (e destes, a grande maioria concentrada no Sul, nas montanhas da Eslováquia). Eram quase 25% os franceses e os alemães que se dedicavam à agricultura, mas com uma diferença essencial: a França era quase sempre auto-suficiente em termos alimentares, enquanto que a Alemanha era fortemente deficitária. A Europa só entrou no clube restrito dos “Alegres Gigantes Verdes” (USA, UE, Canadá, Austrália e Nova Zelândia), os grandes exportadores alimentares, trinta anos depois, com a Política Agrícola Comum, da então CEE. E fê-lo recorrendo em boa medida às abordagens escandinavas, sobretudo dinamarquesas, que visavam resolver problemas concretos, e.g., como recolher o leite produzido por um número elevado de pequenos produtores, para ser posteriormente processado em unidades industriais de dimensão adequada. A Europa tinha entrado na época do juízo prático: foi precisa uma guerra devastadora para que as sociedades europeias, deste lado do Canal da Mancha, deixassem de estar em guerra consigo próprias. Não foi a “3ª Via” dos 1990’s que enterrou Marx. Foi a PAC.

Mas as sociedades são entidades dinâmicas. Até aos finais da Segunda Guerra, todos os países do Mundo podiam ser designadas por “sociedades da escassez”. Uns mais do que os outros, mas mesmo nos mais ricos, mesmo que todos os bens e serviços produzidos que produziam fossem distribuídos de forma absolutamente igualitária pelos seus cidadãos, todos continuariam a ter bastante pouco. Para todos os países, a produção era essencial. Então, a partir de de meados dos 1950’s, nos USA, e uns dez anos depois na Europa Ocidental, as sociedades industriais passaram por uma mudança de fase, única na história humana. John Kenneth Galbraight chamou-lhe “A sociedade da abundância” e fez notar que esta alteração não resolvia todos os problemas; essencialmente, mudava-lhes o centro de gravidade. Numa “sociedade da abundância”, o bem social produzido por muitas empresas já não é o conjunto de bens ou serviços que criam, mas sim o emprego a que dão origem. E essas empresas, para além dos seus produtos, têm também que criar a necessidade para os mesmos. Tinham nascido as ilusões de óptica que viriam a dar origem ao mito da “sociedade pós-industrial”: todos aqueles que trabalham no marketing e na publicidade dum qualquer produto industrial, são “trabalhadores da indústria” ou são “trabalhadores dos serviços”? I rest my case.

Estas alterações qualitativas essenciais foram rapidamente percebidas, embora de forma confusa. “Os revolucionários” do Maio de 1968, marchavam contra a conformidade do “metro, bulot, dódó” à sombra duns barbudos com mais de cem anos. Os jovens do Maio de 1968 ainda não se preocupavam com a toxicidade dos produtos fora de prazo. Viriam a fazê-lo muito em breve, mas no imediato, a sua incongruência foi rapidamente captada pelos membros da geração mais velha. Como Pier Paolo Pasolini disse aos estudantes italianos, “Quando vocês atacam os polícias, eu estou do lado deles. Eles são os filhos dos pobres, vocês são os filhos dos ricos”. Mas o mundo não pára e em 1989 o Muro caiu. Não trouxe nenhuma alteração civilizacional importante. Apenas libertou a História. Um ou dois anos antes (esta é a versão de Tony Judt, ouvia-a contada de diversas formas), um ouvinte duma estação de rádio arménia telefonou para a estação e perguntou: “Mas afinal, o futuro é previsível, como afirma o materialismo histórico, ou não é?”. O locutor de serviço respondeu “Claro que sim, todos os dias prevemos o futuro. O passado é que é mais difícil . . .Não pára quieto”. A dissolução da União Soviética abriu os arquivos de leste e aquela área essencial do conhecimento humano a que chamamos História moveu-se. Já por aqui escrevi a esse respeito e mais do que uma vez. Mas ninguém tem que formar a sua visão do mundo a partir daquilo que eu escrevo. Falem com pessoas que tenham vivido a Europa de Leste. E leiam. Vão ter aquela sensação física de movimento de que aquele locutor arménio descreveu.

Não foram apenas os documentos relativos à história das sociedades do século XX. A Academia das Ciências da URSS, honra lhe seja feita, compilou e preservou ao longo de décadas, um grande repositório de todos os textos do marxismo, incluindo a correspondência dos seus pais-fundadores. Mais de cinquenta mil páginas e a opinião dos historiadores que a ele tiveram acesso, é que aquilo que ali não se encontrar é porque foi perdido por causas naturais, na época. O papel é um suporte físico muito mais frágil do que o pergaminho e a pedra da antiguidade e o papel do século XIX é particularmente de má qualidade, pelo que o acesso a estes documentos é mais recente. Aquilo que aí vem é borrasca e não o afirmo de ânimo leve. Contudo, é possível chegar às mesmas conclusões a partir de muito menos dados. A transcrição que se segue faz parte de correspondência particular, tornada pública com a autorização explícita do seu autor.

Fiquei pessoalmente abalado pelo livro de Schwartzschild, e foi apenas a minha visão da estatura moral de Marx que foi destruída. A razão para o meu ponto de vista a respeito da estatura de Marx como cientista não ter sido abalado é muito simples. Desde o início que não tinha uma opinião muito elevada, mas tinha-lhe dado todo o benefício da dúvida que era possível; e a minha opinião tinha-se deteriorado, tanto ao escrever o livro como após o ter escrito; tão lentamente, que nunca me apercebi disso. Quando li [o livro de] Schwartzschild não havia mais nada para ser destruído.
Assim, foi apenas quando li a sua Introdução‡ que me apercebi que devia ter referido a alteração da minha visão a respeito da seriedade científica de Marx. Portanto, aceito a sua crítica por completo.

Karl Popper

No entanto, se o que ficou dito encerra o capítulo do “Acabar com os ricos” e das liturgias do ódio (de Esquerda, as restantes requerem um tratamento mais alargado que não é o meu propósito aqui), não abrem de par em par as portas do “Acabar com os pobres”. . . (cont.)

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*No caso de Marx e dos movimentos da III Internacional, “aversão” é um termo manifestamente desadequado, pois o único suficientemente descritivo é “ódio”. Não é muito fácil compreender o asco com que Marx tratou os pequenos agricultores franceses, na sua vasta maioria criados pelas reformas agrárias da Revolução. Mas o melhor exemplo é, sem dúvida, a demonização do kulak russo, por Lenin e pelos seus sucessores. Veja-se que o termo russo teria que ser traduzido por “agarrado”, ou “unhas-de-fome” visto que designa aquele movimento com os dois punhos cerrados à altura do peito, que por vezes fazemos para ilustrar tais comportamentos. Os kulaks eram “camponeses ricos”, por vezes o seu capital resumia-se a uma vaca. Como categoria sociológica, tem uma dignidade rigorosamente igual a zero; como epíteto, diz imediatamente aos destinatários aquilo que podem esperar de quem o usa.
†Não é claro a partir do texto, se Hemmingway se referia ao “Homestead Act” de Lincoln, em 1862, ou às iniciativas “Subsistence and Homestead” de Roosevelt, do início dos 1930’s. Talvez ao primeiro, pela área de terra referida pelo protagonista, mas o mais significativo é o facto de se tratar dum conjunto de tradições anglo-saxónicas muito antigas, veja-se e.g. a discussão de Noam Chomsky a respeito da(s) Magna(s) Carta(s).
‡A discussão entre Flew e Popper reporta-se à nota que o último adicionou à 5ª edição de A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, exactamente a respeito do livro citado: “Schwartzschild descreve-o como alguém que via ‘o proletariado’ meramente como um instrumento da sua ambição pessoal. Embora isto possa ir para além daquilo que a evidência documental permite, tem que se admitir que essa evidência, em si mesma, é devastadora.”

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