
Era algo de irreprimível.
Desde a primeira pratada sob a hóstia, a coisa apanhou-me.
Um dia, tinha eu seis anos, no restaurante do Edmundo, onde ia aos almoços de Domingo com os meus pais, não resisti a colocar o prato do pão debaixo do queixo lambuzado do senhor Eleutério, presidente da junta.
Corpus Christi. Levei tantas no focinho, do senhor meu pai, secretário da junta, que ainda hoje me sobram alvéolos dentários vazios. Não só mos arrancou, a murro, aos dentes, e ainda eram de leite, como me há-de, por certo, ter rogado a praga dos braços da Vénus de Milo - nunca mais os caninos floresceram.
O tempo passou. Ao meu pai, o diabo o carregue, que a pá da vaca, o dinheiro nunca deu para mais, exige dentição sólida, ao meu pai, dizia, deu-lhe um
tremoço, hoje trombose, e ficou incapaz de me ir aos molares e incisivos, bênçãos do meu estômago.
E pude dar largas ao vício.
Acolitei por onde pude. Acolitei, acolitei, acolitei. Até na capela dos lampiões, ao tempo da senhora Prieto. Tenho no meu
curriculum vitae a baba do Eusébio na manga da minha t-shirt dos
Scorpions - não havia por ali nada que se assemelhasse a uma bandeja, despi a t-shirt e não fui de modas. Acolitei de pano.
Nos dias do Senhor e nos de belzebu. Acolitar. Acolitar sempre. Era o meu lema.
Desgraçado, fui arrumar carros para o Bairro.
Destroce, destroce. Quando vinha a moeda, sacava do cesto do ofertório. Aos bêbados arriscava um
ego te absolvo.
Em claro desafio à lei do
“se acolitar, não conduza”, acolitei e conduzi. Acolitei em hospitais, perante os olhares de recriminação dos doentes, os de profissão e os mesmo. Acolitei em espaços fechados. Acolitei
contra legem.Um dia, Deus me perdoe, a minha mãe apanhou-me a acolitar
-me. Mesmo na altura do
“ai jesus que me acolito todo”. Ainda assim acolitei até ao fim. É difícil acolitar a pilinha com a direita, enquanto ostento a vela acesa na esquerda. E o cilício a doer, tão bom - não dava para parar. E o
acolitus interruptus dói de ir aos infernos. Nunca mais olhou para mim da mesma forma.
Um primo meu, médico de ofício, falou-me nos A.A., associação recém-criada nas imediações da Sé de Braga. Mudei-me de armas e bagagens para a cidade da Bragaparques, deixando para trás toda uma vida de pão sem fermento.
Hoje, 20 de Março de 2008, ergo-me entre os meus iguais, companheiros de ex-sacristia, e com orgulho proclamo:
- Chamo-me RP, sou Acólito Anónimo, e não acolito há
quarenta dias e quarenta noites.
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