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Eu nunca tinha lido o texto que segue do Saramago. Hoje, ao almoço, o meu pai perguntou-me: - já leste esta coisa maravilhosa? E deu-me a ler a carta do Saramago à sua avó. Acabei-a num soluço.


O meu pai, por acaso, nasceu em 1922, em Grijó de Vale Benfeito, uma aldeia, então, perdida em Trás-os-Montes, tão distante, tão rural. A minha avó tinha 16 anos quando o meu pai nasceu e o meu avô 19, gente dada à longevidade, pelo que tive a sorte de ter avós paternos até bastante tarde, coisa que pareceria impossível, dada a idade avançada do meu pai, quando comparada com a idade dos pais dos meus colegas de escola. Isto para dizer que esta carta do Saramago diz-me muito, sei exactamente de que tipo de mulher está a falar, sei daquela ruralidade, sei daquela ligação à terra que Saramago não esqueceu, ouvi da boca dos meus avós, para além do que me transmitiu o meu pai, tanto do que me faz sentido nesta carta. Eis um texto magnífico e nele a possibilidade da intimidade entre o leitor e o escritor. Hoje, o meu dia teve sentido por causa do momento de génio e de autenticidade que se passo a trancrever:


 


"Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.

Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrijada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.

Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”.

É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua".

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publicado às 14:38


32 comentários

De MFerrer a 27.07.2010 às 15:03

Obrigado Isabel!
Não tenho mais palavras...

De Sofia Loureiro dos Santos a 27.07.2010 às 15:09

Obrigada por me dar a conhecer este texto de Saramago.

De ivy a 27.07.2010 às 15:27

Tão bom!!

De rayssa gon a 27.07.2010 às 15:47

nossa, obrigada mesmo.

De Bartolomeu a 27.07.2010 às 15:58

a melancolia das coisas que só têm sentido porque não as pudemos amar como devíamos...

De José Viegas a 27.07.2010 às 16:05

Muito bom. Valeu bem a pena ter posto este texto hoje no blog.

De João Ricardo Vasconcelos a 27.07.2010 às 16:13

Divinal

De Rogerio Pereira a 27.07.2010 às 16:24

Cara Isabel Moreira,
Conheci esta carta há muito pouco tempo (uma amiga publicou-a no seu blogue). Fêz bem em divulgá-la... Reporta valores e deixa interrogações, de uma forma que só um homem profundamente humano o faria (para além da qualidade do texto)!
A pouco e pouco, vão sendo conhecidos textos que tiveram divulgação restrita. Hoje mesmo tive a grata oportunidade de ler a comunicação que Saramago fez no Fórum Social Mundial, publicada no DN de hoje (infelizmente não disponível na versão on line). Estou a trabalhar nesse texto que editarei amanhã no meu blogue
Gostei de a conhecer...

Abraço Amigo

De r a 27.07.2010 às 16:29

Obrigada!

De AMN a 27.07.2010 às 16:53

Por acaso dava 16 valores a esta redacção. Até porque tem pontuação adequada. O que não tenho é orgasmos, desculpem lá.

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