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De vez em quando aparecem propostas como esta. Do que se trata não é de querer implantar a Monarquia de um dia para o outro, há uma estratégia, trata-se de permitir que essa escolha seja possível. Para um monárquico convicto, é difícil de aceitar a que a Constituição Republicana de 1976 (CRP) seja isso mesmo, Republicana, que se defina nas suas traves mestras, entre outras realidades, por ser Republicana, e que, por isso mesmo, não permita o seu suicídio.
Como assim?
É preciso compreender que todas, mas todas as constituições têm aquilo a que chamamos de limites materiais de revisão. Tentando ser muito simples no discurso, isso significa que todas, mas todas as constituições, têm um conjunto de traves mestras, sem o qual - ou destruído o qual - não estamos perante as mesmas constituições.
Essas traves mestras, numa palavras, são os ditos limites materiais à revisão constitucional.
Para dar um exemplo, se, por revisão constitucional, os Deputados, cumprindo todas as formalidades do processo de revisão constitucional, consagrassem, num preceito, a confessionalidade do Estado, não estaríamos perante uma revisão constitucional, porque quando se revê a CRP, ela permanece a mesma, nas suas traves mestras, e, neste caso, a trave mestra da separação das Igrejas do Estado teria sido atingida de morte. Qualquer pessoa, sem dificuldade diria: esta coisa é uma coisa nova, mas não é a Constituição portuguesa de 1976.
O mesmo se passa com as constituições dos outros países. É exactamente a mesma coisa. Pegamos em cada uma delas, procedemos à sua análise e identificamos quais são aqueles princípios essenciais que formam o coração desses textos, os tais princípios que se forem desvirtuados - e até podem ser - têm de nos levar a concluir que ocorreu uma ruptura, uma transição constitucional, no limite uma revolução, mas nunca uma simples revisão constitucional, precisamente porque já não reconhecemos as constituições originárias que tinham sido objecto de análise.
Por tudo isto se diz, e bem, que todos os textos constitucionais contêm limites materiais de revisão constitucional, limites esses que se traduzem numa prevalência do poder constituinte sobre o poder de revisão constitucional.
Acontece que os ditos limites podem ser expressos ou implícitos. Cada um sabe de si, isto é, cada povo - estou a pensar em processos electivos de feitura de constituições -, representado numa Assembleia Constituinte (AC) escolhe se quer apenas aprovar o articulado de uma constituição, do qual, por interpretação, retiramos quais são as suas traves mestras, os seus limites materiais, ou se, para maior segurança do texto, para sua maior preservação, numa postura mais positivista, vá, até por reacção a circunstâncias históricas de constituições nominalistas, como a de 1933, pretende aprovar num preceito - como é o nosso artigo 288º - uma extensa lista de limites materiais de revisão constitucional.
Esta foi a nossa escolha. O artigo 288º contém uma lista muito grande de limites, mas ele próprio, claro, está sujeito a interpretação jurídica, e temos de ler toda a CRP para saber se tudo o que ali está é realmente limite material no sentido em que se as matérias para as quais o limite remete, se desvirtuadas totalmente, desvirtuam a CRP, ou se, ao contrário, há limites que se não estivessem contidos no artigo 288º não seriam limites materiais de revisão, pelo que só o são porque lá estão.
É por isso que o princípio democrático e a impossibilidade de se petrificarem as gerações futuras a 1975 impôs uma relativização do alcance geral das cláusulas de revisibilidade.
Não quero entrar em domínios muito técnicos, quero apenas explicar que as diversas alíneas do artigo 288º têm relevâncias diferentes por referência aos princípios fundamentais que enformam a ideia de direito consagrada na CRP actual e mesmo a ideia de direito subjacente à revolução de Abril.
Numa palavra, só não podemos desvirtuar, e por isso rever, os limites que decorrem da salvaguarda da "essência identitária da Constituição", roubando uma feliz expressão a Vital Moreira. Por isso mesmo foi possível, em 1989, a supressão da primitiva alínea j) - "a participação das organizações populares de base no exercício do poder local" -, bem como a alteração da redacção das alíneas f) e g) do texto originário - abandonaram quer a referência ao "princípio da apropriação colectiva dos meios de produção e solos", bem como dos recursos naturais" e à "eliminação dos monopólios e dos latifúndios", e a alusão à "planificação democrática da economia".
Posto isto, há limites que seriam sempre limites mesmo que não estivessem escritos no artigo 288º. Mais: há, entre os limites materiais que encontramos naquela longa lista, aqueles que são limites do próprio poder constituinte, isto é, quem está a fazer a constituição já está limitado por um núcleo de princípios que fazem o núcleo identitário da ideia de direito subjacente à fonte de direito (no nosso caso a revolução) que suporta quem aprova as normas. Esses limites vinculam, por maioria de razão, o legislador de revisão, este, este mesmo de que agora se fala.
Com isto chegamos à forma republicana de governo, alínea b) do artigo 288º, logo o segundo limite. É um limite banalíssimo em constituições republicanas. Um limite, insisto, que seria sempre limite, mesmo que lá não estivesse escrito.
Implica uma interdição dirigida à AR, quando procede a uma revisão, que restaure a Monarquia em Portugal. É impossível. Mas isto que incomoda alguns, isto da República, não está só nesta alínea. Nos artigos 1º, 2º e 11º encontramos a referência a Portugal como República soberana, para além de haver dimensões do princípio republicano em vários preceitos espalhados pela CRP. Serve a indicação para afirmar que esta cláusula proíbe mais do que a Monarquia; proíbe a revisão de certos corolários do princípio republicano, como seja o princípio da renovação dos cargos políticos (artigo 118º da CRP) e a consagração de sufrágios periódicos ou a atribuição de privilégios em razão da ascendência (artigo 13º/2 da CRP), para já não mencionar a possibilidade de acesso a cargos públicos que não em condições de igualdade e de liberdade (artigo 50º /1 e 3 da CRP).
Para concluir, sublinharia duas coisas:
1) Já sabemos que não é possível haver referendos sobre questões inconstitucionais. Pensa quem defende a alteração ao artigo 288º, que, assim, um refendo seria possível. Engana-se. Não seria, porque, como já expliquei, mesmo que eliminasse a alínea que consagra expressamente a forma republicana de governo como limite material de revisão, o limite material de revisão em causa continuaria a existir implicitamente, já que é dos tais que não precisava de ter sido explicitado no artigo 288º. A forma republicana de governo, em face de tudo o que referi, faz parte do núcleo identitário da CRP. Sem ela, Portugal continua, pois claro, mas não sob a égide desta constituição. A revisão é, portanto, inútil.
2) Significa o exposto que a nossa constituição não é democrática porque não permite ao povo escolher entre a monarquia e a república e estamos condenados a esta última? Claro que não. A nossa constituição dá pelo nome de Constituição da República Portuguesa. Como é normal, não prevê o seu suicídio. Não lhe compete prever passar a ser o seu oposto. Acaso a carta constitucional de 1826 previa a possibilidade da República? Não tenho ideia disso e penso que a li de uma ponta a outra. É evidente que se o povo português quisesse, de facto, uma ruptura com esta forma de governo, com os princípios que enunciei, naturalmente não seria o artigo 288º que o impediria. Implantar-se-ia a Monarquia por transição constitucional, aprovar-se-ia uma nova constituição, como quisessem, agora não esperem que seja a República a implantar a Monarquia.
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