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Nunca foi tão fácil ter uma voz. Todos os dias somos invadidos por noticiários de estações de televisão diferentes, por pessoas que em cada um deles nos explicam as notícias sob um ponto de vista, por programas de debate político em vários canais com comentadores cada vez mais confortáveis nessa profissão, cada vez mais risonhos, cada vez mais educadores, por artigos de opinião, finalmente por blogues, centenas de blogues, milhares de blogues.
Ainda bem. Nunca foi tão democrático, tão acessível a qualquer um ter o seu meio para emitir esse poder, a opinião, com a particularidade de na net poder ser-se anónimo, ou assinar-se com outro nome, o que nada tem de errado e é um exercício normal de liberdade de expressão. Depois, neste universo particular, existem as caixas de comentários, qualquer pessoa pode, num par de segundos, dizer que um texto é um lixo.
Ainda bem.
Lembro-me de um tempo em que pensava que o mundo dos blogues era um mundo onde se escrevia com demasiada impulsividade. Tinha a impressão de que quem ali estava reagia a quente a uma notícia, a um acontecimento; a um ataque, zás, reagia a um texto - com um imediatismo que me inquietava - que ficava ali, já estava, uma inscrição. Eu não gostava disso. Disso, que era a minha leitura de absoluta desconhecedora dos blogues, mas já com direito a opinião, disso, que era uma pessoa escrever em tempo rápido, não em tempo demorado, como nas crónicas semanais dos jornais. Tinha para mim que era isso que justificava a crispação de que me falavam, ou o nível elevado de agressividade ou a confrontação fulanizada com os famosos links cuspidos nas caras uns dos outros.
É certo que eu tinha e tenho um blogue. Mas era e é um armário para depositar os meus textos de um outro registo, para os não perder. Ali não há links nem confrontos.
Um dia entrei para o Jugular e rapidamente percebi que não desculpas.
Há, de facto, culpas.
Na verdade, é certo que a net permite uma rapidez de resposta e uma abertura a multidões que se manifestam nos comentários e, sobretudo, permite que muita gente que não tem acesso à televisão nem aos jornais emita opinião. Mas isso não justifica a falta de ponderação no que se escreve, a permanente fulanizarão do discurso, o ataque quotidiano ao carácter das pessoas, o foste tu, foste tu, o tom de ameaça de muitos textos e, nisso tudo, em suma, a junção da falta de carácter, de cobardia e de total incapacidade de se debater ideias sem a tentativa da destruição do outro – transformado no tu denegrido – que sustenta a ideia a abater.
Escrevo que a rapidez da net não justifica este clima de guerra injusta, porque se o imediatismo não faz do imediatista criminoso continuado, é ingénuo imaginar-se que quem escreve uma crónica por semana num jornal passa seis dias em reflexão. Também o cronista tem a sua vida e escreve a sua crónica quase sempre como pode, quando pode, tantas vezes em cima da hora e não é por isso que é ou não é um pulha, convenhamos.
Por outro lado, este clima de destruição do tu não é exclusivo da blogosfera. Quem estiver atento ao que se passa nos telejornais, nos programas de comentário político, nas colunas de opinião escrita, encontra, em muito do que por ali se passa, tudo menos uma descrição isenta dos factos noticiosos relevantes seguida de um debate profundo, esclarecedor e motivador de reflexão sobre os problemas do país e do mundo.
Pelo contrário, em muito do que por ali se passa, encontramos o estafado discurso de que os políticos são umas bestas e depois uma caça desenfreada à culpa e ao episódio da semana, uma ronda tópica nominal para eleger quem foi o mais suspeito, o mais ridículo, o mais digno de troça, o mais vendável para as horinhas de entretenimento sobre política, as tais onde se explica, num breve segundo inicial em que os rostos são de pesar, que os políticos estão descredibilizados, para depois vender o peixe, o país miserável sem arranjo e, vagamente, ao longe, o mundo perdido.
O ecos dos caluniadores, dos sorridentes sem carácter, dos mentirosos que estão na televisão e nos jornais não aparece em gráficos como nos blogues, não estão tipificados em centenas de comentários escritos, mas espalham-se em mesas de café, em ruas, esquinas, telefonemas regozijadores, que bela sova aquela, causam um dano insuportável na vida de muita gente, muito maior, claro, do que um post num blogue, uma mentira produzida num telejornal corre meio mundo antes que a verdade vista umas calças.
Tudo isto para dizer que não há diferença, quanto à natureza do destruidor compulsivo do outro, em termos de desculpa, por causa do meio onde ele se manifesta.
Claro que poderá dizer-se que sempre foi assim. Sempre se caluniou. Sempre se apontou o dedo sem provas. Há muitos exemplos disso, de jornais dedicados à destruição de pessoas, ódios que se geraram para vidas inteiras. Mas, por acaso, tenho por certo que nunca se chegou tão longe como agora. Nos últimos tempos tenho escrito menos e lido mais. Não aprendi absolutamente nada. Excepto mais disto mesmo: vivemos numa peste negra de gente com a boca na lama. Todos os dias. Um ofício. Dizer mal. Caluniar. Ameaçar. Foste tu. Pior: foi ele. Há, no texto dessa gente, uma linha que se fosse de dança seria “contemporânea”, que é de aviso: escreve-se que se tem material em mãos que prova a calúnia. Mas escreve-se isso num tom muito crispado, como que de ex-colega, não se percebe muito bem, imagina-se uma cara a suar com um papelinho na mão, uma frase, uns dentes a rangerem. E o estilo da dança seria o “contemporâneo” por quê?
É sabido que a protecção quase absoluta dos meios de telecomunicações privados é uma das grandes conquistas da democracia. Esta liberdade, esta garantia de que todos temos de falarmos ao telefone com quem quisermos, de dizermos o que nos vai na alma, sem cautelas, de enviarmos mails, uma centena de mensagens escritas por dia se nos apetecer, com coisas indizíveis nas mesmas, porque sim, assim mesmo, com a certeza de que não vamos ser escutados a não ser por quem escolhemos, e que ninguém pode fazer uso indevido das nossas palavras porque elas são isso: nossas. Por isso, uma carta pertence a quem a escreve, não a quem a recebe. Um mail também. E por aí fora. Isto é uma conquista da democracia, que reagiu ao horror da privacidade vigiada das ditaduras. Hoje, sabemos que só em circunstâncias excepcionais, previstas na lei processual penal (e antes disso com previsão constitucional) é que estes princípios de ouro podem ser quebrados.
Acontece que está na berra ouvir as conversas alheias. Semanas e semanas de primeiras páginas com violações de segredos de justiça, de providências cautelares, com fotografias de pessoas ao telefone, semanas e semanas em que a palavra mais escrita e dita na imprensa escrita e oral foi a palavra escutas. Banalizou-se essa coisa de se saber do que andavam uns certos políticos a falar ao telefone, quais eram as suas mensagens escritas.
A partir daí, a partir da banalização do espírito totalitário, qualquer caluniador com dois dedos de testa na matéria de destruição do tu, qualquer parasita do sistema de descredibilização do outro, veste o seu uniformezinho caseiro de satsi, de pide, e carrega os seus textos que são um vazio de diz que disse e estavas lá e és um isto e aquilo e estás com o poder e vendido e mais um par de botas com a tal ameaça velada de um qualquer suporte para a acusação, um suporte como aqueles que aparecem na televisão, e na capa daquele pasquim do fim-de-semana. São textos carregados de construções processuais totalitárias, em mau, claro, mas ainda assim faz muita impressão o tempo que se perde com a calúnia, com a boca na lama, com um suado e frustrado olha que eu sei e com a total ausência de sentido do outro.
Calúnia, calúnia, calúnia. Basta ler-se um título de um jornal. Parar? Pensar? Fazer um telefonema? Ouvir a parte interessada? Para quê? É como uma bulimia. Uma linha sugestiva, ainda que sem fundamento, num jornaleco qualquer sobre a falta de honestidade de alguém é uma porta aberta de um frigorífico cheio de bolos. Escancarada. Um bando de bulímicos atira-se aos bolos e escreve com ódio, azedume, acusa, foste tu, acusa, destrói, massacra. Vive disso.
Arruinar a credibilidade profissional do outro: eis uma missão nacional para tantos que se têm por notáveis. Um a um, grão a grão, até haver um clima de suspeita geral sobre uma espécie de gente.
Sim, há espécies sob suspeita imediata. Por exemplo, para além de ser evidente que quem defende ou não ataca quem está no poder ser um vendido, claro, e uma pessoa sem liberdade, hoje em dia parece mal ser-se assessor do Governo. É assim uma coisa indigna. Quem lá está fez favores. E quem não lá está orgulha-se disso. É um fenómeno espantoso. Não esperava viver para ver o dia em que alguém tem de pôr no curriculum nunca fui assessor do Governo ou até fui convidado, mas não aceitei ser assessor do Governo. Tinha para mim que ser-se assessor ou adjunto de um gabinete ministerial era uma coisa digna, mas a suspeita está lançada. Não, estamos mesmo na fase da condenação. Apoiaste o partido mais votado e és assessor? – Previsão da norma penal do caluniador: bandido – estatuição da norma do caluniador.
Naturalmente, quem é atingido na sua honra, na sua deontologia profissional, tem de se defender. E não basta uma vez. Mesmo que apresente os factos todos, nunca ninguém reconhece o erro. Ou morreria. Porque o caluniador vive com a boca na lama e dali não pode sair. Pode enviar um mail privado a dizer que não foi por mal, mas publicamente nada faz.
Para trás ficam os debates que interessam, a troca de ideias saudável entre as pessoas sem a calúnia, sem o insulto, para trás fica portanto a empatia e a coragem, para trás fica o respeito por quem ouve e lê os alegados intérpretes da realidade, para trás fica a liberdade descomprometida, o tu desoprimido, essa palavra tão bonita que anda cheia de lama.
Só há uma coisa a fazer: nunca, mas nunca, responder na mesma moeda. Quem sabe do significado da palavra tu não se deixa dominar pela tentativa de agenda dos fazedores de episódios de calúnia. Todos os dias uma morte: a deles.
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