Podereis roubar-me tudo: As ideias, as palavras, as imagens, E também as metáforas, os temas, os motivos, Os símbolos, e a primazia Nas dores sofridas de uma língua nova, No entendimento de outros, na coragem De combater, julgar, de penetrar Em recessos de amor para que sois castrados. E podereis depois não me citar, Suprimir-me, ignorar-me, aclamar até Outros ladrões mais felizes. Não importa nada: que o castigo Será terrível. Não só quando Vossos netos não souberem já quem sois Terão de me saber melhor ainda Do que fingis que não sabeis, Como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais, Reverterá para o meu nome. E mesmo será meu, Tido por meu, contado como meu, Até mesmo aquele pouco e miserável Que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito. Nada tereis, mas nada: nem os ossos, Que um vosso esqueleto há-de ser buscado, para passar por meu, E para outros ladrões, iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
Jorge de Sena — in Metamorfoses: Camões dirige-se aos seus contemporâneos
Excelência,
Graças ao Observatório Naval da Armada Americana, consegui em dois ou três minutos calcular o tempo decorrido desde a última vez em que tinha tido vergonha de ser português, até à mais recente, desencadeada pela televisiva emoção de V. Exa. na tarde do passado domingo, 5 de Janeiro de 2014. Foram muito aproximadamente 14500,541667 dias, desde "...aquela madrugada clara e límpida" de Abril; nem todos bons, mas durante os quais eu me podia afirmar cidadão deste país sem sem que a vergonha me fizesse corar.
Neste momento, enquanto dura o sortilégio daqueles cerca de metade de um por cento de portugueses que encheram todos os ecrans de todas as televisões (mais ou menos a mesma percentagem de alemães que inundaram as Noites Mágicas de Nuremberga) e as primeiras páginas de todos os jornais que dentro em breve irão embrulhar postas de bacalhau (obrigado, Rui), lido com o meu nojo à minha maneira, mas não quero maçar V. Excelência com assunto tão pessoal, porque a verdade, talvez incómoda para si, é que ainda existem pessoas de bem neste país.
O propósito desta Petição é directo e explícito. Parece que o fulano do pontapé na bola irá ser transladado para o Panteão. Irá fazer companhia àquele esqueleto falso de que falou Jorge de Sena, sem com isso incomodar minimamente o falsificado, que toda a vida conviveu com ralé. Por isso, solicito a V. Exa duas coisas: a primeira é que, com a brevidade possível, diligencie para que o esqueleto, esse bem real, do patrono mais recente de todos aqueles ladrões seja também transladado para o Panteão. Sem a companhia do emérito Prof. Dr., o de Santa Comba, nem o Futebol nem o Fado poderão descansar em paz, sendo que o 'F'-em-falta se consagra a si próprio.
O segundo pedido é no sentido de V. Exa. envidar todos os esforços para lhes ir fazer companhia com a maior brevidade possível. Tendo sido informado pela loiríssima Figura do Estado que lhe sucede na Ordem da República, de que estas coisas têm custos, desde já me comprometo publicamente a contribuir para esse peditório. E aqui deixo a evocação de dois outros Portugueses, cuja simples memória poderá contribuir para acelerar tão fausto desenlace.