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FRANCISCO [6 ANOS]

por Rogério Costa Pereira, em 09.10.13


Parabéns, minha vida. Faz hoje seis anos que te vi pela primeira vez, embora já há muito soubesse da tua existência. Parabéns, filho, e estes não são pelo teu aniversário, mas por seres quem és e como és. Poderei não mudar sozinho o mundo, mas mudarei o mundo sozinho, se preciso for, para que possas continuar a mudá-lo depois de mim. Amo-te.


[todos os anos faço por escrever um texto ao Francisco, no dia de aniversário, para além de todos os outros todos que vou escrevendo e que, raramente, não o têm como pedra de toque e moral da história. este ano, pela primeira vez, li-lhe o pequeno texto que lhe dediquei (assim saiu, pequeno em letras, mas não em sentir) e que encima este post]

-- Que lindo, papá, tão bonito; obrigado e dá cá um beijinho.
-- Gostaste, filho?
-- Sim, muito!, é um presente muito bonito, mas não tenho mais prendas?
-- É capaz de haver para aí mais qualquer coisita, sim. Queres que te leia o texto outra vez?
-- Não, obrigado, ainda não me esqueci. Onde estão as outras prendas?
-- {#emotions_dlg.happy}


[ficam alguns dos textos, que agora me ocorrem que vou colocar na nota em progresso "Cenas do Francisco", no meu facebook] 

LUZ #1 (9 de Outubro de 2008):
[http://pegada.blogs.sapo.pt/62586.htmll]

Há exactamente um ano percebi na plenitude a propriedade da expressão “dar à luz”. Dei por mim contigo nos braços. Um desconhecido, que nem meio metro de gente era. E no entanto daria naquele momento a minha vida por ti. Tentei reconhecer-nos em ti, reconhecer-te em nós. Nada. Não pude. Lembro-me da primeira roupinha que te vesti, ali, com 5 minutos de vida. Tu e eu, ambos com 5 minutos de vida. Um casaco azul por cima. Vou ali já venho, disse a enfermeira - vá-o vestindo. E vesti. Ao mesmo tempo que me degladiava com as instruções da caixa de recolha das células estaminais. E tu dormias ou tinhas os olhos fechados. Coisa que o valha. Deus meu. Que coisa tão forte, quem é que se recusa a passar por isto? Quem é que voluntariamente se recusa a ter um vislumbre de Deus? A tua mãe, exaurida, ainda não te tinha visto. O que é que eu faço? De que cor são as paredes? O tecto? Chove ou faz sol? Que dizem os jornais? Pára! Pára de rodar por um instante, que eu quero apreender tudo, até ao mais ínfimo pormenor. Antes, minutos antes: não queira ter o filho pela boca, mulher, que seria caso nunca visto. Força, força, amor. Já o vejo. Já o vejo. Já nos vê. Levantei a cabeça, tu choravas, eu chorava, ele chorava, o quarto sangrava. Os internos que assistiam olhavam para nós fascinados. Era fascínio, espanto, era também alguma cegueira, causada pela luz imensa que se fez naquela sala. E para a qual eles não estavam preparados. Nem nós, mas nós pudemos chorar para limpar os olhos. Ainda hoje sinto um nó de felicidade na garganta de cada vez que me lembro desse dia, desses instantes. As palavras são muito pouco e poderia estar aqui o resto do dia a debitá-las que nada acrescentaria ao que já disse. Luz, acima de tudo é isso. Uma luz imensa, divina. Como se alguém muito grande e com uma mão muito grande, tivesse carregado num interruptor muito grande e acendido uma lâmpada muito grande. Foi de parir. Esse alguém e essa mão e esse interruptor e essa luz. Foi de parir. Ao parir assim, e parimos os três, faz-se essa luz imensa. Dá-se essa luz, diferente de dar alguém à luz. Filho, um ano, e no entanto parece que foi no início desta carta que ora te deixo. Sei que daqui a cinquenta anos te diria o mesmo. Parece que foi mesmo agora. Há-de parecer sempre. Como se mesmo agora. E cada vez que te olho, a mesma luz desce sobre mim. A luz que nos alumiará aos três, para sempre. Haja o que houver. Ser pai, ser mãe, ser filho. Há um ano. Parabéns, meus amores.


FRANCISCO (9 de Outubro de 2012):
[http://pegada.blogs.sapo.pt/2069392.html]

Esta é uma carta que um dia lerás e, nessa altura, perceberás aquilo que hoje, tu próprio, já me queres explicar (há dias dizias-me que com os homens-maus não vale a pena conversar, que eles continuam a tirar-nos coisas — e eu nunca te disse tal, nunca a disse à tua frente, pelo menos).
Quanto te ia tirar esta foto — na verdade não ta ia tirar, dei-ta para vermos mais tarde —, aquando desta foto, tinhas tu três anos, reparei naquela sombra imensa que ias caminhar e, lembro-me, pausei por dois segundos. Não gelei, nada disso. Parei. Perdi-me ali um pouco; que eu queria mesmo era apanhar-te a sombra, a tua, antes de entrares na outra sombra. Mas tu entraste e a foto ficou bonita e aquela sombra só te protegia do sol, que em Abril de 2010 já queimava.
Hoje, Francisco, estamos contigo dentro da sombra. Outra sombra. Agora, Filho, enquanto te escrevo estas palavras, estamos todos numa sombra imensa que não serve para nos proteger do sol; é uma sombra que não nos deixa ver o sol. Que não nos quer voltar a deixar ver o sol. Que nos quer tirar o amanhã. Eu e todos os Teus, Nossos, tudo fazemos e faremos para que tu, e outros meninos como tu, possam continuar, apesar da sombra, a ver um sorriso, uma nesguinha de sol. Enquanto a sombra má não morre. Mas a verdade, Francisco, é que hoje, essa nesguinha de sol já não vai além de uma pintura na parede. É uma espécie de sol enganador.
O único (e único nunca foi pouco) sol que tu vês é o do nosso sorriso quando sorris. Do teu ser criança. Do nosso amor por ti. Do teu amor por nós. Do orgulho que temos em seres como és e começares a querer lutar, também tu, menino, contra o negrume que nos atenta a todos. Isso nunca nos tirarão. E perceberes quando eu chego a casa desalmado e descoroçoado e eu sentir que tu sentes isso e sentir que tu sentes que estive a respirar fundo aquele sorriso para to mostrar. Dói, sim. E tu sentes isso tudo e vens para mim, olhas para mim e dás-me o teu sorriso, com esses teus olhos que são a minha eternidade. E esqueço-me do meio-sorriso e dou-te um sorriso sério e inteiro, como tu mereces. E tu dizes-me que percebes. Umas vezes dizes mesmo, outras intuo-o no teu olhar.
Já percebeste em que tempo estás, Francisco. Já sabes dos homens-maus. Mas também já te dei a conhecer muitos, outras e outros, os nossos, teus, Amigos que tudo farão para que quando leres esta carta possas dizer algo como "Raio do velho, sempre preocupado. Much ado about nothing..., afinal foi só soprar, e eu lembro-me desse imenso sopro, foi o mundo inteiro a soprar e varreram-se os homens-maus da terra". 
Não sei exactamente quando lerás e perceberás esta carta, a quem a lerás ou quem ta lerá. Não sei se poderás lê-la. Talvez a apaguem. Talvez a queimem. Talvez eu seja parvo. Talvez a sombra imensa que nos impede o caminho e nos arranca os sentidos desapareça com esse tal sopro de que falas. Que o possamos dar. Que não nos falte peito. Ainda que eu pensasse que não é possível, continuaria a minha demanda. Esta luta onde estou dia e noite, a cada respirar teu. Quando te olho à noite, já tu andas aos saltos na brincadeira dos teus sonhos, quando te olho nessa altura, Filho, e esqueço o meu olhar em ti, sinto-me mais forte. Sinto que vai ser fácil soprar, outras vou-me abaixo e perco-me na raiva que sinto pelos tais homens-maus, sim, mas também pelos que nada fazem, essa espécie infecunda de indolentes, pelos que se conformam. Perco-me no desprezo que me atenta quando olho os inconformados de sofá, quando olho os que têm medo. Na pena que sinto pelos que sabem tudo, pelos que desistiram de lutar, pelos que se estão a guardar para o grande momento (pode ser que lhes caia na cabeça), que não embarcam em momentos "simbólicos", "simbólicos", dizem eles. Eles desistiram de ti e dos outros meninos como tu, eu não desistirei nunca de ti. Tenho medo, sim, mas medo de ter medo. E se hoje -- hoje, um dia, quando leres e perceberes o que aqui vai dentro -- olhares para esta carta e sorrires então é porque ou a luta valeu a pena ou eu estava mesmo a exagerar.
Hoje fazes cinco anos, Filho; cinco anos em que nos ensinámos, em que demos passos adiante juntos (e alguns separados, mas eu estava lá de alguma forma). Nem deste pelo que aconteceu desde que nasceste, Francisco. O que estava já a acontecer e a preparar-se quando eu nasci e cuja garganeira tu agora apanhas em grande rotação. Com cinco anos. Temos podido evitar isso, outros não. Ouviste umas palavras diferentes, umas menos bonitas, sabes de uns homens-maus. E nada mais. Outros meninos, Francisco, não. Têm fome, sede. Há avós e pais a morrer de maleitas que poderiam ter sido curadas. E meninos, também. E outros meninos, ainda, que nunca serão. Hoje, Filho, tu tens um nome. Há quem te queira pôr um número. Tratar-te como um número. Se isso acontecer, se não o tivermos logrado evitar, espero poder ter sabido ensinar-te a escapar a essa marca; essa marca que não pode ser a marca do Homem. A lutar contra ela.
Que isto não seja uma corrida de estafetas, que eu não te passe mais do que o testemunho de continuares a lutar por mundo melhor. A luta de hoje não é só por um mundo melhor. É a luta por um mundo. Porque não há mundo no sítio para onde nos querem mandar. Existirá a negação, o imundo. Este é o meu testemunho hoje, Francisco, mas este não é testemunho que te queira passar.
Parabéns, Filho. Amo-te.


OLHOS NOS OLHOS (10 de Fevereiro de 2013):
[http://pegada.blogs.sapo.pt/2184873.html]

Fui ler a historinha ao meu filho. Reparei, pelo canto do olho, que ele não estava a olhar para o livro. Por hábito, e porque o notei desatento às letras e às imagens, parei e olhei para ele. Estava a olhar para mim. Com aqueles olhos grandes por onde lê e se dá a ler.
"Papá, estou a ver a minha cara nos teus olhos"
Olhei-o nos olhos, sorri-lhe e li-lhe o resto da historinha.
"Papá, estou a ver a minha cara nos teus olhos"
Desvendou-me a essência em meia-dúzia de palavras. Há exactamente sessenta e quatro meses que a cara dele está nos meus olhos. Há exactamente sessenta e quatro meses que nos olhamos nos olhos. Faz hoje sessenta e quatro meses que a minha mulher e eu nascemos de novo.
"Papá, estou a ver a minha cara nos teus olhos"
Há coisas do arco-da-velha. Esta frase, longa-metragem das minhas sinopses diárias e redondas, saiu-lhe hoje.
Logo hoje que (ele não sabe) nos encontramos numa encruzilhada para onde não caminhámos mas para onde nos arrastaram.
O meu país já não se chama Portugal. Há exactamente sessenta e quatro meses. Disso já suspeitava, que um país é feito a cada dia por quem o faz e por quem o deixa fazer. E Portugal deixou-se ultrapassar pela direita. Pela direita. Mudou de ser, mudou de título. O nome do meu país é outro.
"Papá, estou a ver a minha cara nos teus olhos"
Faz hoje sessenta e quatro meses.
Não haverá bruxas, apesar de as haver, de as haver.
Já não há países sem Inc. a seguir ao nome.
Mas há filhos e há mães e há pais.
"Papá, estou a ver a minha cara nos teus olhos"
Mania esta que os adultos têm de complicar o que é simples. E toma e embrulha, Morpheus. "What is real? How do you define real? If you are talking about what you can feel, what you can smell, what you can taste and see, then real is simply electrical signals interpreted by your brain." [Morpheus, The Matrix]
Tenta antes isto.
"Papá, estou a ver a minha cara nos teus olhos"
Isto sim, é real.

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publicado às 20:32



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