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Esta é uma carta que um dia lerás e, nessa altura, perceberás aquilo que hoje, tu próprio, já me queres explicar (há dias dizias-me que com os homens-maus não vale a pena conversar, que eles continuam a tirar-nos coisas — e eu nunca te disse tal, nunca a disse à tua frente, pelo menos).
Quanto te ia tirar esta foto — na verdade não ta ia tirar, dei-ta para vermos mais tarde —, aquando desta foto, tinhas tu três anos, reparei naquela sombra imensa que ias caminhar e, lembro-me, pausei por dois segundos. Não gelei, nada disso. Parei. Perdi-me ali um pouco; que eu queria mesmo era apanhar-te a sombra, a tua, antes de entrares na outra sombra. Mas tu entraste e a foto ficou bonita e aquela sombra só te protegia do sol, que em Abril de 2010 já queimava.
Hoje, Francisco, estamos contigo dentro da sombra. Outra sombra. Agora, Filho, enquanto te escrevo estas palavras, estamos todos numa sombra imensa que não serve para nos proteger do sol; é uma sombra que não nos deixa ver o sol. Que não nos quer voltar a deixar ver o sol. Que nos quer tirar o amanhã. Eu e todos os Teus, Nossos, tudo fazemos e faremos para que tu, e outros meninos como tu, possam continuar, apesar da sombra, a ver um sorriso, uma nesguinha de sol. Enquanto a sombra má não morre. Mas a verdade, Francisco, é que hoje, essa nesguinha de sol já não vai além de uma pintura na parede. É uma espécie de sol enganador.
O único (e único nunca foi pouco) sol que tu vês é o do nosso sorriso quando sorris. Do teu ser criança. Do nosso amor por ti. Do teu amor por nós. Do orgulho que temos em seres como és e começares a querer lutar, também tu, menino, contra o negrume que nos atenta a todos. Isso nunca nos tirarão. E perceberes quando eu chego a casa desalmado e descoroçoado e eu sentir que tu sentes isso e sentir que tu sentes que estive a respirar fundo aquele sorriso para to mostrar. Dói, sim. E tu sentes isso tudo e vens para mim, olhas para mim e dás-me o teu sorriso, com esses teus olhos que são a minha eternidade. E esqueço-me do meio-sorriso e dou-te um sorriso sério e inteiro, como tu mereces. E tu dizes-me que percebes. Umas vezes dizes mesmo, outras intuo-o no teu olhar.
Já percebeste em que tempo estás, Francisco. Já sabes dos homens-maus. Mas também já te dei a conhecer muitos, outras e outros, os nossos, teus, Amigos que tudo farão para que quando leres esta carta possas dizer algo como "Raio do velho, sempre preocupado. Much ado about nothing..., afinal foi só soprar, e eu lembro-me desse imenso sopro, foi o mundo inteiro a soprar e varreram-se os homens-maus da terra".
Não sei exactamente quando lerás e perceberás esta carta, a quem a lerás ou quem ta lerá. Não sei se poderás lê-la. Talvez a apaguem. Talvez a queimem. Talvez eu seja parvo. Talvez a sombra imensa que nos impede o caminho e nos arranca os sentidos desapareça com esse tal sopro de que falas. Que o possamos dar. Que não nos falte peito. Ainda que eu pensasse que não é possível, continuaria a minha demanda. Esta luta onde estou dia e noite, a cada respirar teu. Quando te olho à noite, já tu andas aos saltos na brincadeira dos teus sonhos, quando te olho nessa altura, Filho, e esqueço o meu olhar em ti, sinto-me mais forte. Sinto que vai ser fácil soprar, outras vou-me abaixo e perco-me na raiva que sinto pelos tais homens-maus, sim, mas também pelos que nada fazem, essa espécie infecunda de indolentes, pelos que se conformam. Perco-me no desprezo que me atenta quando olho os inconformados de sofá, quando olho os que têm medo. Na pena que sinto pelos que sabem tudo, pelos que desistiram de lutar, pelos que se estão a guardar para o grande momento (pode ser que lhes caia na cabeça), que não embarcam em momentos "simbólicos", "simbólicos", dizem eles. Eles desistiram de ti e dos outros meninos como tu, eu não desistirei nunca de ti. Tenho medo, sim, mas medo de ter medo. E se hoje -- hoje, um dia, quando leres e perceberes o que aqui vai dentro -- olhares para esta carta e sorrires então é porque ou a luta valeu a pena ou eu estava mesmo a exagerar.
Hoje fazes cinco anos, Filho; cinco anos em que nos ensinámos, em que demos passos adiante juntos (e alguns separados, mas eu estava lá de alguma forma). Nem deste pelo que aconteceu desde que nasceste, Francisco. O que estava já a acontecer e a preparar-se quando eu nasci e cuja garganeira tu agora apanhas em grande rotação. Com cinco anos. Temos podido evitar isso, outros não. Ouviste umas palavras diferentes, umas menos bonitas, sabes de uns homens-maus. E nada mais. Outros meninos, Francisco, não. Têm fome, sede. Há avós e pais a morrer de maleitas que poderiam ter sido curadas. E meninos, também. E outros meninos, ainda, que nunca serão. Hoje, Filho, tu tens um nome. Há quem te queira pôr um número. Tratar-te como um número. Se isso acontecer, se não o tivermos logrado evitar, espero poder ter sabido ensinar-te a escapar a essa marca; essa marca que não pode ser a marca do Homem. A lutar contra ela.
Que isto não seja uma corrida de estafetas, que eu não te passe mais do que o testemunho de continuares a lutar por mundo melhor. A luta de hoje não é só por um mundo melhor. É a luta por um mundo. Porque não há mundo no sítio para onde nos querem mandar. Existirá a negação, o imundo. Este é o meu testemunho hoje, Francisco, mas este não é testemunho que te queira passar.
Parabéns, Filho. Amo-te.
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