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Saramago morreu – a minha vida sem pardais

por Rogério Costa Pereira, em 19.06.10

Não é à pessoa.

Escrever é ir além do que se é; só quem o conhece pode destrinçar o ser que acorda e dorme. Não é o meu caso. Nunca vi Saramago e nunca ansiei por isso. Saramago era para mim um livro que se lê. Tão-só. E tão só o fiz quando o fiz. Cresci – de crescer (os anos não são para aqui chamados) – a lê-lo, ao Saramago-livro. Li o Memorial como quem vive uma vida. Saí dele diferente, como quem – por causa – se decide numa encruzilhada. Ele há disto? Que coisa é esta que me deforma & forma desta maneira intrusiva? Na altura, a anos-luz deste presente circunstancial, senti Saramago um escultor, moldando sentires na pedra bruta do meu ser. As palavras do Memorial têm cheiro e sabor e olhos. Ouvem e palpam. Lá estão e cá hão-de ficar para sempre, como parte de mim e de quem de mim veio e há-de vir.

Todos os Nomes. Ainda hoje aquele sou eu. Saramago tem o dom de nos transformar e de nos transformar também. De nos transformar porque não saímos diferentes da discussão, e de nos transformar também porque nos obriga ao protagonismo. Ordena-nos, como que sob ameaça, o papel principal. E lá andei (e ando) entre registos de nascimento e de morte. À procura.

Ensaio sobre a Cegueira. Ceguei primeiro (naquele semáforo) e fui o fingidor depois; Homem Duplicado, procurei; O Ano da Morte de Ricardo Reis, entrei vezes sem conta naquele quarto de hotel.

Não se traduz este sentir em palavras (tento): a minha angústia de hoje, a minha dor, resume-se (?) ao facto de não mais haver mais daquilo (disto), como que a extinção de uma espécie. Acabou-se o chilreio obrigatório e maçador e divertido e saltitante e definitivo (imaginem a vossa vida sem pardais). Da certeza da certeza (da minha) de que para o ano não sairá mais um – ainda que eu o venha a detestar (como aconteceu com Caim).

Caim. Com Caim, que eu (ainda abaixo da esperança média de vida, o que me retira autoridade) julguei escusado, senti (assim que o li) que Saramago dizia algo como "estou quase aí e continuo a não acreditar em ti, essa luz que até já vi [quatro pontos em forma dele, disse ele em entrevista] não pode ser, que eu sei que estou deitado naquela cama e que dali me levam metade para aqui e a outra metade para acolá. Às cinzas."

Assim o quero. Quem manda aqui sou eu. Assim como fiz Blimunda e Baltasar, Jesus a amar Madalena, ceguei o primeiro que cegou. Assim vos dou, eufemismo de marco-vos a ferros. Como vosso pai.

Com Saramago, o homem, foram-se hoje as esperanças de mais intrusões destas. A partir d’agora tenho a certeza de que as páginas não me comandam.

Foi só isto que se perdeu hoje. Este.

Doravante, ler será infinitamente mais cómodo. E aborrecido.

Uma última palavra (e detesto terminar assim) para os que crucificam Saramago ou o enforcam numa figueira, conforme o queiram cristo ou judas: o Saramago que ontem morreu, o dos livros, não tem direita ou esquerda. Foi sempre em frente. Leiam e odeiem ou amem. Ou então calem-se, que daqui não levam votos nem pedidos de mais hóstias ao padeiro.

(também aqui)

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publicado às 02:00


11 comentários

De Ana Paula Fitas a 19.06.2010 às 08:39

Rogério :)
Vou fazer link deste teu lindissimo e generoso post. Obrigado!
... e olha!... nos livros de Saramago haverá sempre pardais para nos devolverem o ritmo interior e impermanente da vida!
Um grande abraço amigo e comovido.

De Rogério da Costa Pereira a 19.06.2010 às 14:34

Obrigado, Ana Paula. Entretanto, reparo que citas também um Rogério Pereira. The plot thickens. (http://anapaulafitas.blogspot.com/2010/06/dialectica-do-nao-segundo-jose-saramago.html)

;)

De Isabel Moreira a 19.06.2010 às 21:30


percorri todos os jornais. nada. nem um texto como o teu, tão sentido, tão bem escrito, tão verdadeiro. obrigada, rogério.

De Rogério da Costa Pereira a 19.06.2010 às 21:41

Obrigado, linda.

De João José Fernandes Simões a 19.06.2010 às 22:11

Todos os Nomes e Homem Duplicado foram os que mais gostei de ler. Com personagens que são a metáfora das nossas próprias 'perturbações'.
Em Todos os Nomes, então, é quase obsessivo na densidade psicológica do seu principal personagem.

Não percebo os que dizem que Saramago escrevia mal. Os seus 'parágrafos' eram compridos mas as suas ideias eram simples. E cruéis. Porque verdadeiras.
Mas concordo que ler Saramago é como 'pintar uma parede'. Exige persistência, teimosia, trabalho e disciplina. Li a maioria dos seus romances quase sem 'intermitências'.

Bonito o que escreveu sobre Saramago, sobretudo onde diz que «o Saramago que ontem morreu, o dos livros, não tem direita ou esquerda. Foi sempre em frente».
Não posso estar mais de acordo. Porque cada vez mais se anda para o lado que melhor convém.

De Rogério da Costa Pereira a 20.06.2010 às 00:02

Obrigado. Já agora, o das "intermitências" está longe do meu top.

De Rogerio Pereira a 20.06.2010 às 01:38

Sim, ela honrou-me com a sua citação e conduziu-me aqui.

Fez bem, acabo de conhecer um amigo... pelo que duplamente agradeço à Paula Fitas (e a si também, por este post...)

De Rogério da Costa Pereira a 20.06.2010 às 01:42

Temos de organizar o dia dos Rogérios Pereiras. ;) Ele há coisas.

De Rogerio Pereira a 20.06.2010 às 01:49

... coisas de pía (pia baptismal, claro)!
Depois de lhe passar o espanto, pode conhecer-me melhor... 

De Rogério da Costa Pereira a 20.06.2010 às 02:11

Muito bem, vamos a isso. Para já a Conversa Avinagrada (http://conversavinagrada.blogspot.com/) passou para a coluna da direita.

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