A Alice e o Bob são namorados e namoram por correspondência. Em certa altura, começaram a desconfiar que a Eva Metediça, a carteira lá do sítio, lhes andava a ler as cartas. Então, numa altura em que se encontraram pessoalmente, combinaram uma forma de evitar tal violação: compraram um cofre, apenas uma caixa com uma tampa, e dois cadeados. Cada um ficou com um deles na sua posse, depois de combinarem como os identificar. Depois, a Alice foi para casa, escreveu uma carta ao Bob, meteu-a no cofre e fechou-o com o seu cadeado, do qual apenas ela tem a chave; enviou-o o cofre pelo correio.
A Eva Metediça ficou frustrada, mas é claro que o Bob também não conseguiu abrir o cofre para ler a carta. Também não tinha sido isso que eles tinham combinado. O Bob simplesmente adicionou o seu próprio cadeado e reenviou o cofre de volta. A Alice identificou o cadeado do Bob, retirou o seu e voltou a enviar o cofre. O Bob abriu-o e finalmente, leu a carta (Ufh!). Escreveu a resposta e reiniciou o processo.
Complicado? Estas histórias exemplares, sempre com as mesmas personagens, não pretendem descrever processos práticos, mas apenas ilustrar princípios. Esta, em particular, nunca teve qualquer aplicação. Depois, veio o Ron (Rivest), mais o Shamir e o Adleman. Sem o algoritmo RSA, ou o equivalente El-Gamal, a Internet não existiria, ou seria apenas um brinquedo de laboratório. Mas foram precisos alguns heróis da liberdade, humildes como sempre são. Sem eles, seria também apenas uma micro-imagem do que é hoje. Foi preciso, quase no sentido bíblico, fazer soar as trombetas ante os muros de Jericó. E os muros desabaram.
Desabaram os muros e abriu-se a caixa de Pandora. Talvez faça parte dalgum equilíbrio cósmico cruel, "Olha mamã, um avião no céu", exactamente quando a promessa dum Admirável Mundo Novo se desfraldava sob o límpido céu azul. É que aquelas maravilhas da matemática não servem apenas para a Alice e o Bob namorarem sem terem que se preocupar com as intromissões metediças, e poderem escrever poemas um ao outro, assinadas digitalmente, para que a sua autoria fique registada em segurança para todo o sempre. Caro leitor, servem também para assinar, de forma indelével e anónima os títulos de dívida que o oprimem, a si e a mim, e a tantos outros milhões de violentados, por esse mundo fora.
Em algum cofre-forte, nalgum paraíso fiscal, hão-de existir papelinhos, I owe you..., Eu devo-lhe..., assinados por um representante da Republica Portuguesa, para isso mandatado. Mas..., a quem? A partir daquele acto inicial, protocolar, aqueles títulos são apenas códigos BIC e SWIFT, assinados digitalmente, anónimos e anonimamente negociáveis.
Caro leitor, dizem-lhe todos os dias e repetem, e a mim também, que você e eu somos uns malandros; umas cigarras tontas que passámos os bons tempos de Verão a cantar La Cucaracha, e que está na hora de pagar as dívidas. Mas..., a quem é que nós devemos? Você não sabe, nem eu. Mas não se preocupe, as cavalgaduras que nos (des)governam também não; com excepção de meia-dúzia de testas-de-ferro institucionais, e em quantidade irrelevantes, é claro. Nenhum de nós sabe, nem os ingénuos e dedicados conhecedores que há mais dum ano se propuseram desvendá-lo. Ninguém sabe. Nem os credores.
Honra ao Povo Norueguês! Eles, pelo menos, querem saber. Querem saber quem lhes deve e se a dívida é legitima. Confirmaram, mais uma vez, o acerto de Alfred Nobel ao confiar-lhes o seu mais importante legado. São apenas uma excepção.
É muito fácil e atractivo embarcar na criancice do "Não pagamos!"; É razoável adoptar a postura do "Temos que renegociar...". É fácil descartar como arroubo juvenil a postura do Syriza grego: "Moratória imediata de todo o serviço da dívida". E no entanto, esta última é a chave do futuro possível, o ponto em que o Yannis entra na história.
Ao propor a moratória do serviço da dívida, Yannis Varoufakis, está talvez a abrir a última janela de solução pacífica da crise, antes que a resposta violenta se torne inevitável: confrontados com a suspensão do pagamento, os credores ou saem do anonimato e ganham uma cara, ou sujeitam-se a verem os seus créditos serem declarados odiosos. Vamos esperar que o tempo da paz e da razão ainda não tenha terminado. Não irá durar muito.