Mais uma excelente crónica de José Vítor Malheiros (Lá vamos, que o sonho é lindo!) publicada na edição impressa do "Público" de hoje, dedicada à participação de Passos Coelho na cerimónia do 40º aniversário de uma empresa privada do sector educativo, à qual, pelos vistos, esteve ligado profissionalmente, participação com direito a discurso proferido por ele e transmitido directamente pela televisão pública, durante 25 minutos.
Essa participação é justamente criticada pelo cronista: "O que me parece menos aceitável é que o primeiro-ministro tenha decidido transformar este seu sentimento pessoal [de admiração pelo fundador da empresa] numa descabida homenagem de Estado com direito a propaganda televisiva."
(Deve ser este o entendimento de serviço público dos actuais governantes, digo eu.)
Mais adiante: "O facto de ser PM deveria impedi-lo de misturar relações pessoais e profissionais com a sua posição institucional. E a existência de uma relação profissional prévia da sua pessoa com aquela empresa deveria aconselhar-lhe alguma contenção na promoção que fez da sua actividade e no aval que lhe conferiu com este discurso"
(Deveria, sem dúvida, acrescento eu, se PPC não confundisse o Estado com ele próprio, numa reedição anacrónica do L'état c'est moi.)
Sobre a substância do discurso, escreve José Vítor Malheiros:
"(...) Para o PM, o país é como uma escola e a escola é um modelo do que o país devia ser. Uma escola exigente, à antiga, uma escola que não existe para educar mas para ensinar, com um mestre-escola à frente, uma cartilha debaixo do braço e os alunos de bibe atrás. Da janela do alto, o director espreita. O mestre-escola exorta os alunos: "Estão a olhar para nós, dêem o vosso melhor". Na alegoria de PPC os cidadãos são os alunos e os bravos dirigentes do PSD são os seus professores. Os alunos (nós) estamos habituados a preguiçar e a ser tratados com benevolência ("os alunos, coitadinhos, sofrem tanto para aprender") mas o Governo, com firmeza e exigência, com justiça mas com a intransigência de um pai disciplinador, vai habituar-nos a trabalhar e vai ajudar-nos a cumprir o nosso destino, sem tergiversações. Há outros personagens neste sonho freudiano: há uns que querem ficar agarrados ao passado, que se andam sempre a lamentar, que não fazem mas fazem de conta que fazem; outros que nos querem atirar ao chão e há, finalmente, uma figura paterna, na sombra, a quem temos de mostrar que somos responsáveis, que somos trabalhadores, empreendedores. "Se queremos que olhem para nós com respeito, temos de olhar para nós próprios com respeito". Há por todo o lado olhares severos que nos julgam, que julgam Pedro Passos Coelho. Há em todo o discurso de Pedro Passos Coelho um adolescente nas suas primeiras calças compridas, apostado em mostrar que já é crescido, que se vai portar bem, que vai tomar conta dos irmãos, que vai suportar os rigores da responsabilidade, que não vai ser piegas, que não vai ceder, que vai seguir à risca o seu modelo, que vai ser um pai severo perseverante.
(...) se Passos Coelho aponta um único caminho, sem estados de alma, sem grande consideração pelas queixas e contestações, piegas todas, não me parece que o faça por querer esmagar as alternativas. Penso que sinceramente não as vê. Todo o seu ser se concentra em mostrar que merece aquelas calças compridas."
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É isso: estamos entregues a um "adolescente" que quer mostrar que já é um homenzinho. Que o é, de facto. O pior é que já não vai a tempo de ser outra coisa.
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