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um saco de plástico azul

por Rogério Costa Pereira, em 09.07.09

Por causa de uma crítica parcialmente negativa, na Ler, comprei e comecei ontem a ler o leite derramado, do Chico Burque. Como estava demasiado indisposto, por causa da entrevista do Vasco Pulido Valente em que havia acabado de tropeçar, na mesma revista, acabei por só ler os primeiros capítulos. Fala de um velho que fala. Deu-me a ideia de que o faz para quem passa, para quem o ouça, particularmente para quem o não ouça. Ainda só li meia-dúzia de páginas, mas deu para ver que o Chico está no seu melhor, que é possível um excelente compositor, um excelente cantor, ser um excelente romancista. Já o velho, que o primeiro capítulo dava um conto, fez-me lembrar a minha avó. A minha avó que aos 90 anos se compenetra em contar-nos as suas paixões de infância, os seus segredos mais escondidos, outrora irreveláveis, ainda que tal revelação se aplacasse com mais avé-marias num dia do que aquelas que ela poderia rezar num ano. As misturas de tempos, de pessoas, dos salões grandes e arrumados das memórias antigas com as arrecadações amontoadas das lembranças mais recentes, como diz o Chico (ou algo parecido). Mas o que mais me trouxe à memória, como o pensamento vai saltando de galho em galho sem pancada nos cornos que o impeça, foi o enterro da minha avó, há meia-dúzia de tempos. Cova aberta, no único metro quadrado de terreno que as suas posses lhe permitiram deixar aos vivos – irónico usufruto. Descido o caixão, e quando já se terminava a função, noto um saco azul, volumoso, ali esquecido ao lado. Que eram os ossos do meu avô, que ali tinham estado todos aqueles anos. Na cova. Ainda eu não tinha acabado de perguntar que lhe fariam e já o saco azul era atirado para cima do caixão acabado de arrecadar, como se de um saco de ossos se tratasse. E era um saco de ossos, não sentiu nada. E terra por cima de tudo, à pazada, que ninguém lá foi atirar à mão - um torrão que fosse. Ali ficarão, até que os cemitérios entrem em desuso ou ali caiba um centro comercial. Os ossos da minha avó, quando o tempo desfizer o caixão, e os ossos do meu avô, separados por um saco de plástico azul. Já estou arrependido de ter comprado a merda do livro, que tinha estas memórias bem mascaradas de quando a minha avó vendia na feira.

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publicado às 12:07


11 comentários

De j a 09.07.2009 às 16:26

Sendo um agnóstico convicto, seja lá o que isso for num mundo com tantas dúvidas, em pouco mais de três anos, perdi o meu pai, o meu único irmão, e, no início deste ano, a minha mãe.

E mais ou mês no mesmo período de tempo perdi o Gigio, a Niska e, há um mês, o Black e logo a seguir o Rex da minha filha. Tudo gente da família, salvaguardando as comparações, para algumas mentes menos complacentes para quem gosta de animais como se gosta das pessoas.

Ainda hoje me sinto culpado da minha mãe me ter pregado a partida de se ir embora e que me apanhou de surpresa, porque sinto que nunca lhe retribui o amor que ela sempre me deu, umas vezes por falta de tempo outras, muitas, mesmo demasiadas, por falta de paciência.

Talvez na mesma cova onde a minha mãe repousa esteja lá também um saco azul do meu pai. Ainda bem que não o vi. Que não consigo ver. Preferi beijar, com ternura, a minha mãe, ainda antes de lhe fecharem a porta da casa apertada e a que a terra faz de telhado.

Não consigo lá ir.

Prefiro sentir os cheiros e as imagens que, com esforço, consigo ainda ter em vida. A morte incomoda-me, perturba-me. Pior ainda, num saco azul e debaixo de um metro e meio de terra.

E pisado já chega em vida. Por isso, quero ter a liberdade de me espraiar na espuma do mar na minha praia de sempre. Mas, espero, que falte ainda muito tempo.

E você pôs-me a chorar. Já não basta quando me irrita.

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