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De como se forma a convicção do julgador

por Rogério Costa Pereira, em 08.07.09

Palmira,


Pedes que alguém te explique melhor o que é que passou em Viana do Castelo. A questão, não conhecendo o processo (e se o conhecesse não falaria dele), não é propriamente fácil de explicar. Em abstracto, o que se passa é o seguinte. Existem dois graus de culpa: o dolo e a negligência. Dentro do primeiro, a modalidade mais grave de culpa, temos o dolo directo, o dolo eventual e o dolo necessário, que devemos ver como degraus que compõem uma espécie de escadaria. Sem entrar em grandes pormenores e grosso modo, digamos que o dolo directo (o mais grave) é o primeiro degrau de quem desce e traduz-se na intenção directa de provocar aquele facto ilícito; o dolo necessário, degrau abaixo, é quando o agente não quer praticar aquele facto ilícito, mas prevê-o como resultado da sua conduta, conforma-se com este resultado e aceita que como consequência da sua acção vai sobrevir necessariamente aquele facto ilícito. A mesma coisa para o degrau abaixo, dolo eventual, sendo que neste caso a diferença para o patamar anterior é que aqui o dano não é visto como consequência necessária da conduta mas, digamos, como consequência eventual. O exemplo académico para distinguir os três graus de dolo é o caso da bomba no café. Podemos estar perante dolo directo, dolo necessário ou dolo eventual, conforme as intenções do agente e, no fundo, a prospectiva que este tenha do resultado da sua conduta. A ver se me explico, se a bomba for colocada no café para matar o empregado do café, que todos os dias lá está a trabalhar, estamos perante dolo directo em relação à morte desse empregado. Agora imagina que morrem também alguns clientes. Dolo necessário ou eventual?




Tudo depende das circunstâncias, imagina que o agente do crime programa a bomba para deflagrar a seguir ao almoço, quando é previsível que exista mais gente no café. Nesse caso, embora ele não queira matar os clientes, temos como “provável” (palavra juridicamente maldita) que ele tenha previsto tal resultado como consequência necessária da sua acção, ainda assim não arrepiou caminho – dolo necessário. Já se a bomba for accionada numa hora em que só o empregado costuma estar no café, depois do encerramento, por exemplo, tudo depende do que se passe na cabeça do indivíduo que a coloca. Se ele imaginar, apesar de o café estar fechado, que é possível que alguém lá entre a tal hora (para além do empregado), e seja morto como consequência da explosão, estaremos muito provavelmente perante um caso de dolo eventual. Ele acreditou que tal poderia acontecer, mas digamos que apenas eventualmente, não necessariamente.

E agora perguntas-me, mas de que depende isto tudo, como entrar na cabeça do indivíduo? (ora pergunta lá) Ainda bem que me fazes essa pergunta. Aqui há que ter em conta várias questões, mas sublinho duas: por um lado a prova que resulte do julgamento (os depoimentos das testemunhas, as palavras do arguido, etc.); por outro lado, a figura do bom pai de família, isto é, ficcionar o indivíduo nos sapatos de uma espécie de cidadão médio, que reage a tudo de acordo com uma espécie de normalidade estatística actualizada. Explicando melhor, e pegando no caso da bomba no café, o que teria passado pela cabeça desse bom pai de família? Seria expectável (desculpe, vpv) que ele acreditasse em quê, intimamente? Que o dano morte seria causa necessária ou, por outro lado, que seria causa eventual da sua conduta? Misturando tudo isto, num caldeirão que não tem caldos de ciência exacta, forma-se a convicção do julgador.


Mas a complicação não acaba aqui, digamos que a opção entre os vários graus de dolo não tem consequências graves, em termos da decisão a tomar; a grande opção coloca-se ao continuar a descer a escadaria, e entre o dolo necessário e a negligência. Ora bem, há dois tipos de negligência, a consciente e a inconsciente. A primeira verifica-se quando o agente prevê o facto ilícito como possível mas acredita que não se verificará. Nota a diferença para o dolo eventual, em que ele prevê o facto ilícito como possível mas conforma-se com o respectivo resultado - se acontecer acontece. No caso da negligência consciente, ele acredita que não vai acontecer nada. Já a negligência inconsciente é o típico descuido, a imperícia. A diferença entre o dolo eventual e a negligência consciente poderá ser a diferença, passe algum exagero que deixo como caricatura, entre mandar alguém 25 anos para a cadeia ou aplicar-lhe apenas uma pena de multa. Refiro-me à questão homicídio negligente versus homicídio qualificado.


(Ainda estás aí?)


No caso que tanta impressão te fez, não se há-de ter provado que o indivíduo tenha agido com intenção de matar, e nota que isto é diferente de dizer que se há-de ter provado que ele não agiu com intenção de matar. Aqui entra o sagrado e diariamente pontapeado principio in dubio pro reo. Imagino que te choque o facto de passar pela cabeça de um juiz que alguém que “rega com álcool” outra pessoa e “lhe pega fogo” possa ter agido sem intenção de matar. A questão deve colocar-se exactamente ao contrário, isto é, há 100% de certeza que o indivíduo agiu com intenção de matar? Que não queria só desfigurar, que não queria só provocar uma dor intensa, medo ou algum misto disto tudo? Não há?, então, deve absolver-se desse crime. Sem mais; que não aceitar isso é ir contra o que se pretende ser o pilar fundamental do Direito: a Justiça.


Aquele relambório inicial foi para chegar aqui e dizer que, dos cinco degraus da tal escada, o juiz optou por não escolher nenhum. Nem a título de negligência o indivíduo foi responsabilizado (não há aqui ponta de ironia da minha parte) - e nota que estamos a falar do crime de homicídio qualificado. O que mudou foi a qualificação jurídica dos factos, e aqui presumo que se tenha provado que ele agiu com dolo (num dos seus graus), isto é, com intenção directa, necessária ou eventual de provocar uma ofensa à integridade física, no caso, agravada pelo resultado morte. Isso ter-se-á provado, o resto não.


As simple as that. E chocar-me-ia que assim não fosse, se mais não resultou provado (e sublinho o se). De qualquer forma, trata-se de uma primeira decisão, sendo certo que estes tipos de sentenças, dadas no fio da navalha doutrinária e jurisprudencial, são perscrutadas qb nas instâncias superiores, principalmente na Relação. Quer ao nível da matéria dada como provada, quer ao nível da aplicação do Direito.



 

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publicado às 12:44


32 comentários

De f. a 08.07.2009 às 13:17

rogério, põe ler mais neste lençol (sim, estou a atacar-te violentamente)

De nuvens de fumo a 08.07.2009 às 13:18


http://www.correiodominho.com/noticias.php?id=10881

Resumindo:
Um alcoólico crónico, que espancava usualmente a mulher, um dia chega a casa e na sequência dos habituais maus tratos resolve, para inovar a lista de agressões, rega-la com álcool . Esta passa dois meses nos cuidados intensivos, provavelmente em sofrimento , nunca saberemos , e acaba por sucumbir aos ferimentos.

daqui, a justiça conclui que uma pena de 8 anos por "ofensaà integridade física qualificada, agravada pelo resultado morte" é justa.

E porque não há-de ser ? afinal pelo que se percebe

"A convicção do tribunal foi fundamentada no depoimento do militar da GNR que tomou conta da ocorrênc ia e que, na altura, 'desvalorizou' o incidente e nem sequer se preocupou em recolher elementos de prova, por ter ficado com a ideia de que tudo não teria passado de 'mais uma discussão' entre o casal.
"

Ora se assim foi , foi justo, basta carregar a/o companheiro com suficiente porrada que depois um homicídio é apenas um descuido.

é uma profissão de risco, ter-se de levar com uma criatura destas.

Para rematar:

"A vítima era mãe de três filhos e tinha ainda a seu cargo três enteados."

ora , a atenuante do carrego é melhor que a agravante dos filhos.
Uma coisa é certa, não há maneira de este caso parecer menos mau. A sorte é que este senhor há-de ter quatro anos de cadeia que serão uma eternidade, mas muito maus ser a população prisional a implementar uma justiça de Talião....




De Miguel Meireles a 15.01.2011 às 11:17

Bom dia,


ATENÇÃO à falsidade, metonimia, bipolaridade e sofisma dos comentários acima indicados. 


Na verdade, as figuras de dolo eventual, dolo necessário, dolo directo e dolo específico são uma falsificação da interpretação do artigo 14º do CP, pois tais situações são existem em nenhuma lei de processo-penal e enquadram-se nas nulidades insanáveis (artigo 119º, alínea f) do CPP).


O dolo é a intenção e não o modo de actuar. Para se determinar a intenção ou finalidade/objectivo com que é feita a agressão tem de ser provada a intenção (o que o agente pretendia alcançar). ora, ninguém pretende matar a não ser por duas razões: a) Em legítima defesa; b) Para esconder um crime anterior. Age com dolo a pessoa que dá inicio a todos os factos repreensíveis, posteriores à primeira acção porque sem inicio de factos não há factos.

De jj.amarante a 08.07.2009 às 13:31

Face à descrição do caso "homem rega mulher com álcool e deita-lhe fogo" e na ausência de mais informação eu também considerei que a descrição era insuficiente para concluir que houvera intenção de matar. Continuo contudo a ser perseguido pelo julgamento do Pide que matou o arq. Dias Coelho do PCP, em que se deu por provado que a vítima estava já agarrada pelos polícias, que o disparo foi a curta distância, que na sequência do ferimento consequência do disparo a vítima morreu, não se considerando contudo ter havido intenção de matar.

De pt a 08.07.2009 às 13:58

Resta dizer que o homicídio por negligência tem uma moldura penal bastante inferior - 3 anos.
Mas, se bem percebi, a perplexidade tinha a ver com a inexistência de dolo de homicídio, em qualquer das suas formas, quando se rega alguém com álcool e se lhe pega fogo.

De j a 08.07.2009 às 14:33

Para um advogado e professor de direito, tenho que confessar que se explicou muito bem.
Coisa que não é comum em alguns advogados e professores de direito que conheço.

Seguramente que a 'cientista', pessoa que gosto de ler, embora me falte o tempo, e ás vezes a paciência, tenha percebido.

É que no Direito e na Justiça é muito mais complexo encontrar a 'objectivade'. Não são 'tubos de ensaio'.

Parabéns pela sua excelente 'lição' sobre os vários graus do dolo, sobretudo do dolo 'eventual', que é do mais complexo de provar em Julgamento, porque na Acusação, particularmente nesta, e na Pronúncia a 'tendência' é ir direitinho para a intencionalidade 'directa'.

Nota:
Não me parece técnicamente muito correcta a designação de 'degraus' mas antes de 'graus'.
Mas, o RCP é que é professor. Eu sou um humilde 'sapateiro'.

De Shyznogud a 08.07.2009 às 14:43

Porque é que não trataste tu disso? E depois a outra põe-se com bocas sobre centralismo democrático em relação à minha pessoa.

P.S. - Rogério, se não gostas do sítio por onde "cortei" tens bom remédio.

De j a 08.07.2009 às 14:45

Porra, podia ao menos ter corrigido os erros, que isto foi escrito à pressa:

objectivade, ler objectividade.
E por analogia a Julgamento:
Acusação, ler Inquérito.
Pronúncia, ler Instrução

De Rogério da Costa Pereira a 08.07.2009 às 14:49

Foi para me atacar publica e violentamente.
(Cortaste muito bem, eu não cortaria melhor.)

De Rogério da Costa Pereira a 08.07.2009 às 14:53

Imagino que os juízes não tenham tido a oportunidade de ler o Correio do Minho, antes de proferir o Acórdão. Shame on them. O que você diz não tem ponta por onde se lhe pegue.

De Rogério da Costa Pereira a 08.07.2009 às 14:58

j,
a expressão "degraus" vem da imagem da escadaria de ascensão ao grau máximo de culpa. Tecnicamente não é muito correcta, mas a ideia era fazer-me entender.

(Quanto à questão do professor de direito, e como hoje anda para aí alguma malta com problemas com os títulos, quero deixar bem claro que não tenho qualquer doutoramento - para além de exercer Advocacia há 14 anos, sou um mero assistente convidado numa Universidade do interior)

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