Dizem os suspeitos do costume que as eleições de 25 de Maio de 2014 foram uma tragédia. Que 2/3 dos portugueses se abstiveram e que, por toda a Europa, a extrema-direita está em marcha. Como de costume, os suspeitos do costume são tolos. Regressarei à situação local, mas a primeira coisa que deve ser dita é que É FALSO. Com mais de dois milhões de portugueses abaixo dos 18 anos, os "9,683,885 eleitores inscritos" são uma manifesta aldrabice. E quem quer que conheça os serviços consulares da república portuguesa por esse mundo fora, sabe bem que a Diáspora recente e jovem representa mais uns 5%-6% de "abstenção técnica". 52%-53% de abstenção real é muito, mas não é o cenário que as louva-a-deus carpideiras querem fazer crer.
Por toda a Europa, os factos confirmam aquilo que está no título e que todos deviam saber. Em França, a presidência do sr. Hollande é tão má que começa seriamente a pôr em causa o modelo constitucional da V República; mas não é mais do que isso. E os resultados dos broncos do boteco, na Grã-Bretanha, mais uma vez confirmam o lema: o problema dos britânicos é a mediocridade manifesta dos seus políticos actuais, não é um problema de Europa-assim, nem de Europa-assado. E já agora, porque todas as referências, nestes assuntos, são a despropósito, onde estão os prognosticadores do "...ui, aquela terrível extrema-direita ucraniana..."? Será que repararam que os movimentos ultra-nacionalistas ucranianos somaram mais ou menos o mesmo resultado que os pnr-pnd-monárquicos-e-outros-bisnaus cá do burgo? Será que vão reconhecer as figuras muito feias que têm andado a fazer? Não me parece, mas continuemos, porque existem, de facto, boas noticias. Locais, como todas.
Mais interessantes que todos os outros, são os nossos, muito próximos e verdadeiros hermanos: será que Podemos? É #CLAROQUEPODEMOS, basta querer e fazer por isso. Em absoluto, a acompanhar. Então e nós por cá, pá?
Nós por cá nem carne nem peixe, a política é local, toda a política é local. E sui generis, num país em que os trotskistas ofereceram um picador de gelo aos estalinistas e apetece dizer à Marisa Matias: "Rica, ofereça-lhes antes uma Walther P-38, eles preferem ...". Mas fica também a maior derrota eleitoral de sempre do PSD. Para o "partido mais português de Portugal", está muito próxima duma hecatombe e no que respeita ao compagnon de route, já nem um táxi será preciso, basta um capacete e depois ... quem é que conduz, se é o Mota Soares, se o Portas ... e quem vai atrás ... para o que der e vier, já lá diz o povo "... não metas a colher ...". E também a mais pifía das não-vitórias, mas até isso pode estar a mudar.
A 3 de Maio de 1791, os exércitos coligados da Grã-Bretanha, da Espanha e do Sacro-Império invadiram a França. Como resultado do caos instalado após a Revolução, a resistência foi ténue e sobretudo, desorganizada. Foi sem grande dificuldade que os Três Poderes impuseram a sua vontade e a divisão do território segundo as suas próprias conveniências. Os Britânicos anexaram a faixa norte, quase ao longo duma linha recta, de La Rochelle a Reims; O Sacro-Império absorveu o triângulo da Alsácia e ao longo da fronteira Suiça, com o seu vértice em Poitiers. A Espanha anexou o resto. Mais tarde, quando a Rainha Vitória foi aclamada Imperatriz da Índia, Amadeu I, o novo rei de Espanha, procurou a paridade de estatuto e intitulou-se Imperador das Caraíbas. O principal resultado, foi que a pequena povoação de Saint-Benoît tornou-se uma curiosidade em toda a Europa: O Triângulo dos Três Imperadores, onde muitos curiosos se deslocavam com o propósito de obterem um postal ilustrado com três carimbos diferentes, um por cada Imperador. Atente-se na orientação das sombras.
Foi nesta altura que acordei. É óbvio que "um século sem França" nunca poderia ter sido outra coisa do que um sonho mau ... Ou será que poderia? Ou será que foi algo muito exactamente assim que aconteceu e mil anos de história da Europa, mais uma nação de dimensão semelhante à francesa e com uma importância similar, na cultura europeia, estiveram mais de um século quase rigorosamente invisíveis? Foi exactamente isso que aconteceu e, em boa medida, O défice de Europa na actualidade é o resultado do imenso buraco negro que existe na mente duma boa parte dos geograficamente europeus. Esqueçam a Marine Le Pen. Quando uma maioria significativa dos habitantes deste continente forem capazes, sem auxílio, de responder acertadamente à pergunta "Qual foi o quarto maior exército aliado durante a 2ª Guerra?", ela e outras anomalias semelhantes serão relegadas para o rodapé da História, senão directamente para o seu caixote do lixo.
No próximo domingo, irão decorrer eleições neste continente. A vasta maioria terá a ver com um projecto de civilização brilhante, mas actualmente em péssimo estado. A "Democracia contra os mercados" é muito provavelmente a única esperança duma saída pacífica para a crise actual, mas que ninguém se esqueça que vai haver uma outra eleição, mais a leste. Se. Nunca seria curto explicar a relação profunda dos acontecimentos na Ucrânia com aquela invisibilidade da Polónia durante quase 130 anos, mas seria sempre tão inútil como tentar descrever o arco-íris a cegos convencidos de que têm uma visão perfeita. Slavoj Žižek, ele próprio originário da tal "Europa de leste" viu-o na perfeição. Sem qualquer surpresa, Freitas do Amaral não o vê. Cem anos passados desde o início da 1ª Guerra mundial, o digno professor ainda não absorveu o princípio da autodeterminação dos Povos, ou mais provavelmente, acha que todos os princípios terminam à beira da pata do urso russo.
Se o quadro que virá a resultar das eleições do próximo domingo é pouco claro em toda a Europa, é particularmente cinzento nas margens do Mar Negro. O Kremlin anunciou, pela 3ª vez, que as suas tropas colocadas junto à fronteira ucraniana iriam regressar aos quartéis. Como comentou um correspondente da BBC "Seria caso para pensar que existe um problema no sistema de comando militar russo...", se não fosse absolutamente óbvio que o verdadeiro problema do czar actual é o mesmo do gangster georgiano que o antecedeu em meados do século vinte, como o era o duma zoofílica alemã, duzentos anos antes: quando dizem uma verdade cai-lhes um braço, e nunca nenhum foi nem está disposto a ser manco. Existe sempre uma certa majestade quando os co-soberanos colectivos fazem ouvir a sua voz. Seria magnífico que os europeus mostrassem que são dignos da liberdade de que gozam. Seria uma ironia magnífica que fossem os metalúrgicos do Donbass a frustrarem as manobras do patifório de Moscovo.
N.B.: Este post deveria fazer parte do anterior. Devido àquilo que tudo indica ser um erro de sistema, teve que ser publicado separadamente.
B.B. Mandelbrot encontrou a curva de Cauchy por todo o lado na Economia, porque ela é a solução da equação diferencial da ressonância forçada. Os estatísticos chamam-lhe “A curva das caudas gordas”, porque ao contrário da curva de Gauss, a sua amplitude se mantém significativamente maior do que zero a uma distância apreciável do centro. É exactamente uma dessas “caudas gordas” que estamos a viver neste país, e neste continente, desde 2007-2008. A excitatriz é a criação monetária pelos bancos (comerciais!) e o coeficiente de amortecimento, o delta na curva de resposta, é a taxa de reservas fraccionárias. Em 2008, estivemos provavelmente tão perto da tempestade perfeita quanto é possível, mas note-se que a Economia não tem um modo de oscilação simples e o sistema bancário não tem uma taxa de reservas uniforme.
De qualquer forma, a ressonância psicológica (!), como Stéphane Laborde lhe chamou, esta sim, é intrínseca ao sistema de criação monetária pela dívida e ao sistema de reservas fraccionárias. A partir daqui, a opção de “quebrar o passo” tem uma forma simples: podemos continuar a ter o sistema de reservas fraccionárias, ou podemos continuar a ter bancos privados. Mas não ambos. No caso concreto de Portugal, necessitamos quanto antes de renegociar a dívida pública, mas devemos ter a consciência plena de que esta é uma medida de limitação de avarias. O mais importante é que a sociedade possa ser libertada para levar a cabo aquela tarefa essencial de “Acabar com os pobres”. Assim, rigorosamente de volta ao início.
§O exército americano manteve sempre um atraso tecnológico apreciável no respeitante a carros de combate. Na Segunda Guerra, esse foi o resultado da decisão política de privilegiar a quantidade, logo aquilo que pode ser fabricado em grande número (nem tudo pode). Nos anos seguintes, enquanto o complexo militar- industrial americano conseguia manter ou aumentar o seu avanço tecnológico noutras áreas, o seu atraso a respeito de “tanques de batalha” ia-se mantendo, até que, em finais dos 1970’s, o Pentágono decidiu que a situação tinha que mudar duma vez por todas. E nada de técnicas metalúrgicas complexas, ou dinâmica de fluidos em regime turbulento. A solução definitiva envolvia apenas o metal mais duro de todos: o urânio. Mas o urânio é também o metal mais pesado existente no planeta e o produto final, o tanque M-1 Abrahms pesa quase o dobro dos carros de combate usados por outros exércitos. Como era destinado às unidade estacionadas na Alemanha, o exército americano informou as autoridades alemãs do facto e das suas implicações. Eles já sabiam. O processo tinha sido acompanhado com toda a atenção ao nível federal, ao nível estadual e ao nível local. As autoridades militares americanas foram submergidas por uma avalanche de projectos de renovação de estradas, de reforço ou substituição de pontes e viadutos, bem como de terminais ferroviários. Com a carne pronta para ser posta em cima do assador, o exército americano pagou a renovação duma parte substancial da rede viária do Centro e do Sul da Alemanha. ¶Isto, em absoluto, não pode ser dito daqueles países a que eu chamei “em vias de desenvolvimento”. ||Os autores testaram inclusive a hipótese inversa, ou seja, que aqueles problemas pudessem ser a causa da desigualdade económica, sem qualquer evidência de correlação. **No entanto, aquelas estruturas hierárquicas profundamente enraizadas na cultura nipónica, não têm expressão directa no nível de rendimentos e não parecem interferir com aqueles indicadores de bem-estar social. ††Porque não faz sentido falar em sequência temporal quando falamos, por exemplo, de mortalidade infantil ou de crime violento. ‡‡Até meados do século XX, a expressão usada era quase sempre ciclo do comércio. Esta tinha, pelo menos, a dignidade de se referir aos efeitos observados, sem assumir implicitamente nada. A discussão a respeito da natureza “endógena” ou “exógena” do fenómeno tem mais ou menos o mesmo interesse que a afirmação “. . .O Universo é uma forma de onda . . . ”.
No entanto, se o que ficou dito encerra o capítulo do “Acabar com os ricos” e das liturgias do ódio (de Esquerda, as restantes requerem um tratamento mais alargado que não é o meu propósito aqui), não abre de par em par as portas do “Acabar com os pobres”. No fim de contas, o sucesso da Europa ocidental nos anos do pós-guerra foi, em boa medida, o resultado de os europeus terem ficado no “lado certo”, isto é, o lado dos vencedores, na guerra que se seguiu. Mesmo fria, ou talvez por causa disso, os contendores sentiram a necessidade de beneficiarem os seus aliados e nenhum usou essa necessidade melhor do que os alemães. É um parêntesis, mas virtualmente irrecusável: devemos censurá-los por isso ou aprender com eles?§ Continuemos.
Em boa medida, aquilo que facilitou a implementação dos sistemas de estado-providência dos países da Europa ocidental no pós-guerra, foi apenas o baby boom. Dizimados por duas guerras assassinas, em duas gerações consecutivas, os europeus decidiram virar Thomas Malthus de pernas para o ar. O crescimento demográfico europeu facilitou a introdução daqueles sistemas, mas o próprio caso português, em que a versão local dos mesmos se iniciou após o 25 de Abril de 1974 mostra que o crescimento demográfico não é condição sine qua non para a sua existência e sustentabilidade. Mas eu não estou a escrever acerca da sustentabilidade dos sistemas de segurança social. O assunto é o “Acabar com os pobres”, logo, temos que começar por definir com um mínimo de precisão o que significa pobreza e o facto simples é que, em absoluto, não significa o mesmo em duas sociedades distintas, nem sequer na mesma sociedade, em dois períodos suficientemente afastados no tempo. O facto simples, e reportando-nos apenas a Portugal, é que mesmo os mais pobres do presente são incomparavelmente mais prósperos do que os pobres de há cem anos atrás. Aviso à navegação: os períodos de crise (vamos continuar a chamar-lhes “económica”, para poupar nos detalhes) devem sempre ser tratados separadamente. Se quisermos encontrar pobres como os de há um século, temos que nos reportar aos fenómenos complexos da transumância cultural, gerados em boa medida pela abertura das fronteiras, e ainda assim, mesmo entre aquele fenómeno cronicamente incompreendido que são as populações “Rom”, ou “Roma” (“Romani”?) encontramo-las em piores condições neste país do que em países mais igualitários, como a França, mesmo que aí continuem a ser bodes expiatórios convenientes. A ponta de um padrão começa a emergir, mesmo nestes contra-exemplos extremos, mas, sem cuidar de definir os critérios para a classificação, vamos dividir os países em “desenvolvidos” e “em vias de desenvolvimento”. Para os países desenvolvidos, “Acabar com os pobres” significa “Reduzir a desigualdade”.
Publicado em 2009 (com uma edição revista em 2010), The Spirit Level: Why More Equal Societies Almost Always Do Better, foi rapidamente qualificado como a mais recente “Teoria Britânica do Tudo”. As críticas também não tardaram e seguiram o padrão habitual do “Vodka com Laranja”, embora tenha que ser dito que foi pouco vodka e muita laranja (na versão britânica do cocktail, claro). O essencial das conclusões está na afirmação contida no sub-título “As sociedades mais igualitárias saem-se melhor, quase sempre”. Esta obra tem um ponto muito forte a seu favor: não é um livro sobre Economia (!). O índice de (des)igualdade, tal como indica a primeira figura, é apenas o ratio entre os rendimentos dos 20% do topo e os 20% do fundo e nada mais necessita de ser dito a esse respeito.
A segunda figura sumariza os resultados (embora eu ache que os autores iriam entender esta minha afirmação como uma sobre-simplificação). Sem grande surpresa, os países mais desiguais saem-se muito pior em quase todos aqueles critérios. Portugal e os Estados Unidos andam quase sempre a par, a afirmação essencial é que isto não tem a ver com o nível absoluto (monetário) dos rendimentos, mas sim com a maior ou menor desigualdade existente nas sociedades analisadas.¶ O outro aspecto essencial das conclusões, é que as sociedades mais igualitárias não só “se saem melhor em média”, como “todos (quase) se saem melhor”. Os dados analisados pelos autores são anteriores a 2008, e não me vou repetir a respeito dos períodos de crise, mas é quase chocante constatar que a mortalidade infantil e a esperança de vida à nascença nos 20% do topo, nos USA, é pior do que a observada nos 20% do fundo na Grécia.
Muito, ou quase tudo daquilo a que eu chamei “a laranja no cocktail” das críticas tem a ver com estatística. Não é por acaso. Estatística tem a ver com “acaso”, com fenómenos aleatórios; se precisarmos de saber, sei lá, a distância entre Coimbra e a fronteira espanhola, não precisamos de estatística para nada, certo? Errado, e isso faz parte do problema, mas vejamos primeiro as palavras. “Acaso” é uma categoria que usamos quando não nos queremos comprometer com uma afirmação a respeito da natureza dos fenómenos subjacentes. É o equivalente filosófico a fugir com o rabito à seringa (em muitos casos, inquestionavelmente a melhor atitude). “Aleatório” e “aleatoriedade” chegam-nos através do trabalho de Huygens (1629-1695), “De ratiociniis in aleae ludo” (‘Cálculos em jogos de fortuna e azar’) e aqueles termos impregnaram o pensamento europeu com um sentido de regularidade no meio do acaso. Curiosamente, o inglês “random” não tem nada a ver com jogos de fortuna e azar. Deriva do francês medieval “un cheval à randon”, que designava um movimento que o cavaleiro não conseguia prever, logo, que não conseguia controlar. Temos assim três ideias essenciais: imprevisibilidade, logo, o risco que lhe está associado, mas também a ideia de que estes fenómenos exibem alguma regularidade, mesmo que de larga escala ou longo prazo, mas que pode ser adequadamente definida. O resultado é um dos pontos altos do conhecimento humano e, tanto quanto sei, foi a resposta para o problema de como medir distâncias no terreno; a distância verdadeira, que podemos perfeitamente assumir que existe. Acontece que, se fizermos aquela pergunta (“. . . qual é a distância entre Coimbra e a fronteira espanhola?”) a dez topógrafos diferentes, vamos obter dez respostas diferentes, qual é a verdadeira? A resposta: muito exactamente, a média aritmética das respostas; chamamos-lhe Lei Normal dos Erros Experimentais (com muito maior frequência, apenas “normal”, ou “distribuição de Gauss”). A sua forma algébrica é complicada
mas numa folha de papel, obtemos apenas a familiar curva em forma de sino que, não só mas também, tem vindo a fazer parte de todas as laranjadas a partir de meados dos 1980’s.
Agora, como qualquer pessoa de bom senso saberá, há sinos e sinos. E esta outra curva a seguir, em que é que difere da curva de Gauss?
Acontece apenas que eu fiz batota e esta segunda é que é a verdadeira curva de Gauss em (19.1). A primeira é designada por distribuição (função de densidade) de Cauchy e voltarei a ela. Afirmei acima que The Spirit Level tem como grande trunfo a seu favor o facto de não ser um livro de Economia. Para ilustrar esta afirmação, olhemos de novo para aquela segunda figura retirada do livro. Designa-se por “regressão linear” e a linha a vermelho designa-se por “linha de regressão”. Qualitativamente, é apenas a recta que, de entre as infinitamente muitas que podem ser desenhadas na folha de papel (ou no ecran do computador), minimiza a soma das distâncias de todos aqueles pontos à própria recta; qualquer outra produziria somas superiores. Qualitativamente, não precisamos de mais nada para afirmar a existência de correlação entre desigualdade de rendimentos e todos aqueles problemas sociais; no mínimo, podemos também afirmar a existência de uma hipótese causal razoável.||
A desigualdade, em sociedades desenvolvidas é, pelo menos, uma causa importante de muitas das disfuncionalidades que essas sociedades exibem. Para irmos para além disto e para podermos fazer afirmações quantitativas a respeito daqueles factos, necessitamos de algumas hipóteses constitutivas, nomeadamente, qual daquelas curvas usar. A resposta é: a segunda, a verdadeira curva de Gauss. No entanto, a maior parte das críticas não tem a ver com isto. Voltemos àquela distância e aos nossos dez topógrafos. Então e se um dos resultados fosse substancialmente diferente dos outros, digamos, o resultado dum topógrafo alcoolizado? A normal permite-nos detectar essa condição, que designamos por “aberração estatística”, ou apenas pelo anglicismo “outlier”, portanto, o que fazer nestas circunstâncias? A sabedoria convencional diz-nos que devemos pura e simplesmente descartar esses outliers; no assunto em apreço, isso significaria descartar muitos ou quase todos os resultados americanos. No caso do nosso topógrafo alcoolizado, um teste certificado de alcoolemia, válido à data e hora das medições, autorizaria tal prática. Sem isso, nunca, nem que tivéssemos que invalidar todas as experiências.
Num quadro menos limite, a opção envolveria um juízo a respeito do risco envolvido: podemos viver com um resultado deficiente a respeito daquela distância, ou não? Ou será que um resultado anómalo esconde uma condição de risco elevado? Em 1985, uma expedição científica britânica que realizava observações atmosféricas a partir da base de Mc Murdo, na Antárctida, reportou uma depleção pronunciada da camada de ozono sobre o Pólo Sul. Inicialmente, tais resultados foram recebidos com grande cepticismo. Por um lado, as observações feitas “de baixo para cima” estão sujeitas a múltiplas interferências e, mais importante, naquela altura a Terra estava já coberta por uma rede de satélites atmosféricos e estes, olhando “de cima para baixo” não estão sujeitos às mesmas interferências e não reportavam quaisquer condições fora do normal. Por descargo de consciência, os resultados não processados dos satélites foram re-examinados. E alguém apanhou um grande susto. Não só a diminuição da camada de ozono tinha sido detectada, como a sua magnitude era ainda muito mais elevada do que o inicialmente reportado. O software que fazia a análise das observações tinha eliminado aqueles resultados como aberrações estatísticas. Considero que isto encerra a parte das críticas a The Spirit Level.
Mas vejamos mais um aspecto das suas conclusões e uma das mais inesperadas. O processo pelo qual as sociedades atingem aquela condição de maior igualdade não parece ter qualquer importância. Os autores fazem notar que, invariavelmente, os países que se saem melhor em todos aqueles indicadores são os países escandinavos e o Japão. Ora, dificilmente poderiam ser mais diferentes. Na Escandinávia existem diferenças de rendimentos muito grandes, mas depois, um sistema de impostos progressivos e um estado social muito forte, encurtam fortemente a diferença, pelo que o resultado final é aquele que podemos constatar na primeira figura. No Japão, os impostos são baixos e o estado social fraco, mas a diferença de rendimentos é à partida baixa, pelo que o resultado final é muito semelhante. Em absoluto, não existe na obra em análise qualquer indicação no sentido de que o método para “Acabar com os pobres” tenha qualquer importância. A partir daqui, e sendo provavelmente o resultado da minha incompreensão das áreas em causa, a explicação dos autores (sociológica ou epidemiológica?) causa-me algumas dúvidas.
Com as reticências referidas anteriormente, os autores ligam os problemas causados pela desigualdade às hierarquias sociais daí decorrentes. Ora a sociedade japonesa é fortemente hierárquica; conheço-a o suficiente para saber que algo mais necessita ser dito, mas também não tenho qualquer outra hipótese a apresentar. Uma coisa eu sei: quando se juntam dois japoneses, formam-se pelo menos três níveis hierárquicos diferentes.**
O caso apresentado em The Spirit Level está provavelmente tão próximo do estatuto de “prova experimental” quanto é possível a um assunto de natureza social. E um dos seus grandes trunfos reside (já o disse sem o justificar) no facto de não ser um livro de Economia. Os autores usam a informação empírica disponível, para realizarem aquele índice de desigualdade, e procuram os efeitos, assumindo a desigualdade económica como estímulo causal. Usaram a distribuição de Gauss como modelo teórico e a escolha dos indicadores justifica essa escolha. O facto simples é que esta hipótese não tem que ser aceite como artigo de fé. Pode e deve ser testada a partir dos dados disponíveis e foi testada. Não há nas críticas que eu conheço, qualquer base para contestar aquele estatuto de quasi-prova experimental.
Os textos de Economia têm um elemento em comum, isto é, são todos produtos do equivalente à Cosmologia Ptolemaica. Esta analogia invocará, provavelmente, a imagem do julgamento de Galileu pelo tribunal da Inquisição, mas tem que ser dito que aquele julgamento foi apenas o estágio final da degenerescência duma escola de pensamento que tentou, durante séculos, ajustar os factos observados a um modelo teórico falso, para além de qualquer tentativa de redenção. Benôit Baruch Mandelbrot [15] fez esta analogia em O (Mau) Comportamento dos Mercados e conta-nos como aqueles remédios medievais tentaram contornar, em vez de explicarem, as novas e desagradáveis (para os defensores da teoria) observações astronómicas. “. . . Começaram com «ciclos» planetários, depois corrigiram a insuficiência dos ciclos adicionando «epiciclos». Quando estes se mostraram insuficientes, outro remendo afastou o centro dos ciclos do centro do sistema . . . à medida que iam chegando mais dados, iam sendo adicionados outros remendos para «melhorar» a teoria. Estes [remendos] satisfaziam os seus velhos clientes, os astrólogos . . . Mas será que alguma vez teríamos chegado a viajar no espaço?”. Esta discussão é semelhante à de Popper, [21], a respeito dos «remendos» hegelianos (de Direita e de Esquerda). Sem surpresa, os resultados são quase tão maus num caso como no outro. Não exactamente tão maus, porque os “Ptolemaicos decentes”, de Stiglitz a Krugman, aos menos recentes Galbraith e Samuelson, até ao candidato falhado a Martinho Lutero da Economia, que foi John Maynard Keynes, evidenciam o digno respeito pelos factos que define, em muito boa medida, a honestidade intelectual. Mas estes também, sem conseguirem ultrapassar os erros essenciais de base. Em boa parte, estes erros têm a ver com aquelas duas curvas que eu apresentei (inicialmente) com identificação errada.
B.B. Mandelbrot definiu formalmente sete tipos diferentes de acaso, ou aleatoriedade, mas a maioria não tem interesse em Economia. Apenas três, que ele designou por [aleatoriedade] suave, lenta e turbulenta, ou “selvagem”. O primeiro caso é a situação daqueles topógrafos que chegam a resultados diferentes, mas, perturbações alcoólicas excluídas, não muito afastados uns dos outros, e sobretudo, bem comportados (!); é a sucessão de múltiplos lançamentos ao ar de uma moeda ou de um dado. É o que acontece quando medimos a ocorrência daquelas múltiplas disfuncionalidades sociais, sem consideramos a sequência temporal desses factos.†† Intrinsecamente, a Economia é uma sucessão de eventos que geram ondas de choque através da sociedade. A vasta maioria “não vai longe”, a sua amplitude atenua-se rapidamente até se dissiparem; um pequeno número tem consequências desproporcionadas, os proverbiais bater de asas dum borboleta que produzem um tufão a um continente de distância. Todos geram uma memória de longo prazo, mas aprendemos há muito a normalizar (no sentido de Gauss) essa memória. Isto porque a vida das sociedades é regulada por dois ciclos naturais, o primeiro sendo o ciclo circum-solar, o ano civil. Já lhe atribuímos mais importância, fortemente dependentes como estivemos durante a maior parte da história humana do ciclo agrícola das sementeiras e das colheitas; continuamos a atribuir-lhe uma importância institucional muito grande e, em boa medida, provavelmente exagerada. O outro ciclo natural é apenas o período médio de renovação das gerações, a esperança de vida ev, e não lhe damos a importância adequada. A Economia é essencialmente turbulenta e exibe dependências de longo prazo. Mais do que isso, o “tempo económico” não é linear, não decorre da mesma forma em todos os referenciais de observação. Sem grande surpresa, o tempo económico expande e contrai em função da actividade. A Economia é o domínio do dinheiro-tempo, exactamente como a Física é o domínio do espaço-tempo.
Muito do que atrás ficou dito pode não se aplicar durante uma situação de crise, mas é preciso dizer que em nenhum outro assunto como este a Cosmologia Ptolemaica, dominante, exibe de forma mais nua e crua a sua natureza profundamente medieval. As crises estão associadas ao chamado ciclo económico‡‡, ou seja, a economia sobe e desce, a actividade económica aumenta ou diminui, mas só falamos de “crise” durante a fase descendente. Ou como diz a proverbial voz do povo, “Só se lembram de Santa Bárbara quando ouvem os trovões”.
Os Romanos foram grandes construtores de estradas. Estas tinham como objectivo primordial permitir movimentar rapidamente os exércitos, quando necessário. E essas estradas tinham que atravessar cursos de água, pelo que foram também grandes construtores de pontes. E às vezes as pontes caiam. Provavelmente, algumas terão caído por estarem mal feitas, mas estas não geraram grandes registos. Apenas as outras. Os acidentes registados, esses, tinham sempre um elemento em comum: aconteciam quando a ponte estava a ser atravessada por uma coluna militar. Para além daquele propósito primordial, as vias romanas e as suas pontes constituíram também um estímulo ao comércio e eram por vezes multidões compactas, a caminho dum qualquer mercado das imediações, que atravessavam aquelas pontes e nada de errado acontecia. Apenas quando a ponte era atravessada por um destacamento militar, logo, das duas uma: ou os deuses estavam zangados e com aquela legião em particular, ou algo necessitava de ser feito. Recordemos apenas que as legiões romanas eram formadas essencialmente por infantaria e que eram rigidamente disciplinadas. Como todas as tentativas de aplicar as divindades falhavam, algo mais tinha que ser tentado, e foi, por tentativa e erro, mas resultou. E as pontes deixaram de cair. Ainda hoje, quando uma coluna militar tem que atravessar uma ponte, é dada ordem de “quebrar o passo”. As pontes romanas caiam por efeito de ressonância entre a frequência natural da estrutura e a cadência de marcha das legiões que as atravessavam. No presente, a frequência natural destas estruturas é demasiado baixa para que o problema possa ocorrer, mas não tentem explicar esta parte a um sargento-instrutor. A sua reacção não vai ser simpática e ele é que vai ter razão.
“Mas então, lá no teu país vocês têm um comunismo?”, perguntou Primitivo. “Não. É coisa da nossa República”, respondeu Robert Jordan. “Para mim, tudo pode ser feito pela República”, retorquiu Andrés. “Não é preciso mais nada”.
Ernest Hemmingway — in «Por quem os sinos dobram»
Pelo final de 1975, Otelo Saraiva de Carvalho (já comandante do Copcon), foi à Suécia participar num evento organizado pelo Partido Social-Democrata Sueco. No regresso, e com aquela ingenuidade que o caracteriza, contou um episódio ocorrido durante a sua estadia. Um dos seus anfitriões perguntou-lhe “Ainda não conseguimos compreender o objectivo da vossa revolução. Afinal, o que é que vocês pretendem?”, e ele respondeu “Nós queremos acabar com os ricos, pois claro!”, ao que o outro respondeu “Pois nós aqui queremos acabar com os pobres”.
Tanto quanto me consigo aperceber, naquele momento histórico em particular, aquela conversa poderia ter ocorrido em qualquer país da Europa além-Pirenéus, mas foi extremamente adequado que tenha ocorrido na Suécia. No início do século XX, a Escandinávia era uma região historicamente pobre, como Tony Judt a descreveu, «[. . . ] uma região de florestas, herdades, indústrias de pesca e uma mão-cheia de indústrias primárias, quase todas na Suécia». No meio duma população constituída maioritariamente por pequenos agricultores, madeireiros e pescadores, os sociais-democratas suecos compreenderam que, se se mantivessem agarrados aos dogmas do movimente socialista do século XIX, com a sua aversão ao rural,* os seus eleitores “proletários”, mesmo que associados a alguma da classe média urbana (pouco significativa, na altura), iriam assegurar-lhes uma minoria permanente.
A Escandinávia e a Suécia em particular não seguiu o caminho do desespero, trilhado por outras sociedades na Europa de entre as guerras. Naquela passagem fabulosa da Espanha de Hemmingway, os guerrilheiros do grupo do Pablo e da Pilar questionam o dinamitista Inglés (que eles sabem perfeitamente que é americano) a respeito do seu país, e, quando ele descreve o sistema de “homesteading”† no seu estado natal do Montana, ficam extasiados. É sem surpresa que tal estado de coisas tivesse aparecido a camponeses espanhóis sem-terra como um paraíso comunista. Por toda a Europa Central e do Sul, os camponeses amargurados foram presa fácil para os fascistas e outros extremismos. A sua cultura católica tornava-os atreitos a deixarem-se conduzir por quem quer que se afirmasse como detentor da verdade e capaz de dar todas as respostas. Os não menos deprimidos agrários, madeireiros, caseiros e pescadores do extremo norte estavam marcados pelo individualismo da sua tradição protestante; os sociais-democratas suecos e escandinavos em geral, não só não os hostilizavam, como apoiavam as suas cooperativas. Em Saltjöbaden, em 1938, representantes dos patrões suecos e dos trabalhadores assinaram um pacto que iria formar a base das relações sociais do país. Foi também nessa altura que Orwell escreveu “Homenagem à Catalunha”. Isto não encerra o capítulo “Acabar com os ricos”. A liturgia do ódio é muito antiga na cultura europeia, mas, na Esquerda em particular, essa liturgia, desde Babeuf em finais dos 1790, tem sempre duas constantes. Uma é aquela divisão entre a cidade “avançada” e o campo “atrasado”; a outra é o facto de se dirigir sempre a uma minoria. Em The Good Society, Galbraight escreveu que o “Contrato com a América”, o programa transformativo dos conservadores americanos, em 1984, era reminiscente do “Manifesto Comunista”, de 1948. No estilo, na estrutura lógica, inclusive no facto de se dirigir a uma minoria de menos de um quarto dos americanos. O original dirigia-se a um sexto dos britânicos, a sociedade mais industrial da época, e a menos de um décimo dos alemães e dos franceses. Metade destes números no resto da Europa.
As sociedades europeias de entre as guerras eram ainda sociedades agrárias em grande medida. Em 1938-1939, com cerca de 5% da sua população ocupada na agricultura, a Grã-Bretanha era o único país a respeito do qual se podia dizer ter completado a transição para uma sociedade industrial; não muito distante, vinha a Bélgica, com cerca de 8% da sua população ligada à agricultura, logo seguida pela Checo-Eslováquia com 10% (e destes, a grande maioria concentrada no Sul, nas montanhas da Eslováquia). Eram quase 25% os franceses e os alemães que se dedicavam à agricultura, mas com uma diferença essencial: a França era quase sempre auto-suficiente em termos alimentares, enquanto que a Alemanha era fortemente deficitária. A Europa só entrou no clube restrito dos “Alegres Gigantes Verdes” (USA, UE, Canadá, Austrália e Nova Zelândia), os grandes exportadores alimentares, trinta anos depois, com a Política Agrícola Comum, da então CEE. E fê-lo recorrendo em boa medida às abordagens escandinavas, sobretudo dinamarquesas, que visavam resolver problemas concretos, e.g., como recolher o leite produzido por um número elevado de pequenos produtores, para ser posteriormente processado em unidades industriais de dimensão adequada. A Europa tinha entrado na época do juízo prático: foi precisa uma guerra devastadora para que as sociedades europeias, deste lado do Canal da Mancha, deixassem de estar em guerra consigo próprias. Não foi a “3ª Via” dos 1990’s que enterrou Marx. Foi a PAC.
Mas as sociedades são entidades dinâmicas. Até aos finais da Segunda Guerra, todos os países do Mundo podiam ser designadas por “sociedades da escassez”. Uns mais do que os outros, mas mesmo nos mais ricos, mesmo que todos os bens e serviços produzidos que produziam fossem distribuídos de forma absolutamente igualitária pelos seus cidadãos, todos continuariam a ter bastante pouco. Para todos os países, a produção era essencial. Então, a partir de de meados dos 1950’s, nos USA, e uns dez anos depois na Europa Ocidental, as sociedades industriais passaram por uma mudança de fase, única na história humana. John Kenneth Galbraight chamou-lhe “A sociedade da abundância” e fez notar que esta alteração não resolvia todos os problemas; essencialmente, mudava-lhes o centro de gravidade. Numa “sociedade da abundância”, o bem social produzido por muitas empresas já não é o conjunto de bens ou serviços que criam, mas sim o emprego a que dão origem. E essas empresas, para além dos seus produtos, têm também que criar a necessidade para os mesmos. Tinham nascido as ilusões de óptica que viriam a dar origem ao mito da “sociedade pós-industrial”: todos aqueles que trabalham no marketing e na publicidade dum qualquer produto industrial, são “trabalhadores da indústria” ou são “trabalhadores dos serviços”? I rest my case.
Estas alterações qualitativas essenciais foram rapidamente percebidas, embora de forma confusa. “Os revolucionários” do Maio de 1968, marchavam contra a conformidade do “metro, bulot, dódó” à sombra duns barbudos com mais de cem anos. Os jovens do Maio de 1968 ainda não se preocupavam com a toxicidade dos produtos fora de prazo. Viriam a fazê-lo muito em breve, mas no imediato, a sua incongruência foi rapidamente captada pelos membros da geração mais velha. Como Pier Paolo Pasolini disse aos estudantes italianos, “Quando vocês atacam os polícias, eu estou do lado deles. Eles são os filhos dos pobres, vocês são os filhos dos ricos”. Mas o mundo não pára e em 1989 o Muro caiu. Não trouxe nenhuma alteração civilizacional importante. Apenas libertou a História. Um ou dois anos antes (esta é a versão de Tony Judt, ouvia-a contada de diversas formas), um ouvinte duma estação de rádio arménia telefonou para a estação e perguntou: “Mas afinal, o futuro é previsível, como afirma o materialismo histórico, ou não é?”. O locutor de serviço respondeu “Claro que sim, todos os dias prevemos o futuro. O passado é que é mais difícil . . .Não pára quieto”. A dissolução da União Soviética abriu os arquivos de leste e aquela área essencial do conhecimento humano a que chamamos História moveu-se. Já por aqui escrevi a esse respeito e mais do que uma vez. Mas ninguém tem que formar a sua visão do mundo a partir daquilo que eu escrevo. Falem com pessoas que tenham vivido a Europa de Leste. E leiam. Vão ter aquela sensação física de movimento de que aquele locutor arménio descreveu.
Não foram apenas os documentos relativos à história das sociedades do século XX. A Academia das Ciências da URSS, honra lhe seja feita, compilou e preservou ao longo de décadas, um grande repositório de todos os textos do marxismo, incluindo a correspondência dos seus pais-fundadores. Mais de cinquenta mil páginas e a opinião dos historiadores que a ele tiveram acesso, é que aquilo que ali não se encontrar é porque foi perdido por causas naturais, na época. O papel é um suporte físico muito mais frágil do que o pergaminho e a pedra da antiguidade e o papel do século XIX é particularmente de má qualidade, pelo que o acesso a estes documentos é mais recente. Aquilo que aí vem é borrasca e não o afirmo de ânimo leve. Contudo, é possível chegar às mesmas conclusões a partir de muito menos dados. A transcrição que se segue faz parte de correspondência particular, tornada pública com a autorização explícita do seu autor.
Fiquei pessoalmente abalado pelo livro de Schwartzschild, e foi apenas a minha visão da estatura moral de Marx que foi destruída. A razão para o meu ponto de vista a respeito da estatura de Marx como cientista não ter sido abalado é muito simples. Desde o início que não tinha uma opinião muito elevada, mas tinha-lhe dado todo o benefício da dúvida que era possível; e a minha opinião tinha-se deteriorado, tanto ao escrever o livro como após o ter escrito; tão lentamente, que nunca me apercebi disso. Quando li [o livro de] Schwartzschild não havia mais nada para ser destruído. Assim, foi apenas quando li a sua Introdução‡ que me apercebi que devia ter referido a alteração da minha visão a respeito da seriedade científica de Marx. Portanto, aceito a sua crítica por completo.
Karl Popper
No entanto, se o que ficou dito encerra o capítulo do “Acabar com os ricos” e das liturgias do ódio (de Esquerda, as restantes requerem um tratamento mais alargado que não é o meu propósito aqui), não abrem de par em par as portas do “Acabar com os pobres”. . . (cont.)
*No caso de Marx e dos movimentos da III Internacional, “aversão” é um termo manifestamente desadequado, pois o único suficientemente descritivo é “ódio”. Não é muito fácil compreender o asco com que Marx tratou os pequenos agricultores franceses, na sua vasta maioria criados pelas reformas agrárias da Revolução. Mas o melhor exemplo é, sem dúvida, a demonização do kulak russo, por Lenin e pelos seus sucessores. Veja-se que o termo russo teria que ser traduzido por “agarrado”, ou “unhas-de-fome” visto que designa aquele movimento com os dois punhos cerrados à altura do peito, que por vezes fazemos para ilustrar tais comportamentos. Os kulaks eram “camponeses ricos”, por vezes o seu capital resumia-se a uma vaca. Como categoria sociológica, tem uma dignidade rigorosamente igual a zero; como epíteto, diz imediatamente aos destinatários aquilo que podem esperar de quem o usa. †Não é claro a partir do texto, se Hemmingway se referia ao “Homestead Act” de Lincoln, em 1862, ou às iniciativas “Subsistence and Homestead” de Roosevelt, do início dos 1930’s. Talvez ao primeiro, pela área de terra referida pelo protagonista, mas o mais significativo é o facto de se tratar dum conjunto de tradições anglo-saxónicas muito antigas, veja-se e.g. a discussão de Noam Chomsky a respeito da(s) Magna(s) Carta(s). ‡A discussão entre Flew e Popper reporta-se à nota que o último adicionou à 5ª edição de A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, exactamente a respeito do livro citado: “Schwartzschild descreve-o como alguém que via ‘o proletariado’ meramente como um instrumento da sua ambição pessoal. Embora isto possa ir para além daquilo que a evidência documental permite, tem que se admitir que essa evidência, em si mesma, é devastadora.”
Um inimigo simplesmente derrotado nunca se submete. Tem que ser dominado pelo terror, até que a própria ideia de resistência se lhe torne inconcebível. Genghis Khan, em carta a um dos seus filhos, censurando-o por não ter exercido represálias sobre a população duma cidade que tinha resistido à conquista.
Os biólogos chamam-lhe Haplogrupo C-M217 (Y). O 'Y' significa que faz parte do cromossoma Y, pelo que só se transmite por via patrilinear. Está presente no genoma de cerca de 0,5% de todos os homens actualmente vivos, mas sendo as leis da estatística aquilo que são, serão mais ou menos outras tantas as mulheres com a mesma ascendência. Terá ocorrido naturalmente por mutação, algures pelas estepes da Mongólia, uns 10 000 anos atrás, pelo que não chegou a fazer parte do genoma das populações que povoaram as Américas. Há uns 1 000 anos, a sua incidência explodiu e hoje está presente em cerca de 8% dos homens nascidos algures entre Nizhny Novgorod e o Pacífico. Os biólogos chamam-lhe 'Factor G' (de Genghis Khan). O comentário anterior a respeito da população feminina aplica-se, mas avancemos no tempo.
O diplomata americano George Kennan, escreveu nas suas memórias, a respeito dos últimos meses da Segunda Guerra, que «Os Russos [...] fizeram uma limpeza total das populações nativas de uma forma que não tem paralelo desde o tempo das hordas asiáticas.» Kennan não tinha, na altura, conhecimento de coisas como o plano da fome, ou do "plano geral para o Leste" (Generalplan Ost), mas a sua reminiscência era adequada. «As principais vítimas foram os homens adultos (no caso de restarem alguns) e as mulheres de todas as idades. As clínicas e os médicos relataram que, após a chegada do Exército Vermelho à cidade, 87 000 mulheres de Viena foram violadas pelos soldados soviéticos. Em Berlim, foram violadas mulheres em número ainda um pouco superior durante o avanço soviético pela cidade, a maioria delas entre 2 e 7 de Maio, precisamente uma semana antes da rendição alemã. Estes números estão certamente subestimados. Aliás, neles não se incluem os incontáveis ataques às mulheres das aldeias e vilas que se encontravam no caminho das forças soviéticas no seu avanço pela Áustria e pela Polónia Ocidental em direcção à Alemanha. O comportamento do Exército Vermelho não foi segredo para ninguém. Milovan Djilas, colaborador próximo de Tito no exército de partisans e que era, nesse tempo, um fervoroso comunista, falou mesmo do assunto a Estaline. A resposta, tal como Djilas a registou, é reveladora: "Saberá Djilas, ele mesmo um escritor, o que são o sofrimento e o coração humano? Não poderá ele compreender o soldado que passou pelo sangue, fogo e morte, se se divertir com uma mulher ou com qualquer ninharia?"» — Tony Judt, Pós-Guerra.
Em 2003, um grupo de investigadores que trabalhavam no mapeamento do genoma humano, reportou aqueles resultados incríveis que referi inicialmente: «Identificámos uma linhagem do cromossoma Y com diversas características fora do comum. Foi encontrada em 16 populações numa grande área da Ásia, desde o Pacífico até ao Mar Cáspio, estando presente com uma frequência elevada: ~8% dos homens desta região têm-na e forma cerca de ~0,5% do total mundial. O padrão da variação dentro da própria linhagem, sugere que teve origem na Mongólia, ~1 000 anos atrás. Um desenvolvimento tão rápido não pode ter ocorrido por acaso; tem que ser um resultado de selecção. A linhagem está presente em prováveis descendentes masculinos de Genghis Khan, e nós propomos que se disseminou por uma nova forma de selecção social, resultante dos seus comportamentos.», pode ler-se na sinopse. Regressemos ao passado recente da Europa.
«No seu caminho para oeste, o Exército Vermelho violou e pilhou (a expressão, neste caso, é brutalmente adequada) na Hungria, na Roménia, na Eslováquia e na Jugoslávia, mas foram as mulheres alemãs as que mais sofreram. Nasceram entre 150 000 e 200 000 "bebés russos", em 1945-1946, na zona alemã ocupada pelos soviéticos, e estes dados não consideram a enorme quantidade de abortos, em resultado dos quais, a par dos seus fetos não desejados, muitas mulheres morreram. Muitos dos bebés que sobreviveram juntaram-se ao número cada vez maior de crianças órfãs e sem lar: os destroços humanos da guerra» — ibidem. Desde sempre que os assassinos se convenceram que os seus crimes não iam deixar rasto, mas enganaram-se. Vejamos as provas.
«Este aumento de frequência, se espalhado uniformemente ao longo de ~34 gerações, iria necessitar de um aumento médio por um factor de ~1,36 por geração, isto para ser compatível com os eventos selectivos mais extremos observados em populações naturais, tais como a disseminação de mariposas melânicas [?? melanic moths (*)] no século 19 na Inglaterra, em resposta à poluição industrial ... Avaliámos as probabilidades desta disseminação poder ter ocorrido por acaso. [...] Mesmo com o modelo demográfico mais susceptível de conduzir a uma disseminação rápida da linhagem, crescimento exponencial duplo, a probabilidade seria inferior a 10 —237; se a mutação fosse 10 vezes mais lenta, a probabilidade seria ainda assim inferior a 10 —10. Logo, o acaso pode ser excluído: a selecção [social] tem que ter intervido neste haplotipo.» — op. cit.. Veja-se que "selecção social" é o eufemismo da linguagem académica para os factos relatados pelo Tony Judt, ou como o follow-up daquele artigo o colocou, «[...]Este efeito seria ampliado pela eliminação de machos não pertencentes à linhagem principal».
Na Ucrânia, os europeus estão hoje a assistir, atónitos, na sua vasta maioria (com uma minoria cada vez mais asquerosa de deliciados), ao regresso da expansão mongol. Não há grandes mistérios no contorno geral da situação. A Crimeia tem uma maioria de "russo-falantes", porque os seus pais e avós foram colonizar os territórios deixado vagos pela população tártara, deportada para a Ásia Central; a Ucrânia, no seu conjunto, tem uma percentagem elevada de "russo-falantes", porque as terras despovoadas pelo assassínio em massa do Holodomor, foram povoadas por russos. E ainda assim, muitos desses russo-falantes dizem claramente "Pushkin, not Putin!". E nós, dizemos o quê? "Ai, o meu umbigo, tão redondinho que ele é..."? Era o que os franceses e os ingleses diziam, enquanto Varsóvia se desmoronava sob as bombas. Não vai ficar por aqui, veja-se o mapa da BBC: ainda não existe contiguidade territorial entre o território russo e a península anexada.
There was a saviour Rarer than radium, Commoner than water, crueller than truth; Children kept from the sun Assembled at his tongue To hear the golden note turn in a groove, Prisoners of wishes locked their eyes In the jails and studies of his keyless smiles. [...] For the drooping of homes That did not nurse our bones, Brave deaths of only ones but never found, Now see, alone in us, Our own true strangers' dust Ride through the doors of our unentered house. Exiled in us we arouse the soft, Unclenched, armless, silk and rough love that breaks all rocks. Dylan Thomas
Os crimes de Stalin teriam sido justificados se tivessem produzido a Revolução Mundial. Eric Hobsbawm
Quando Joachim von Ribbentrop aterrou no aeroporto de Moscovo engalanado com cruzes suásticas, a 23 de Agosto de 1939, houve quem tivesse percebido que tinha sido criada uma nova realidade geopolítica. A revista Time chamou-lhe "O Pacto comunazi", e repetiu-o durante quase dois anos, até que pelo Verão de 1941, a traição de Hitler ao seu parceiro soviético tornou o assunto nulo. Depois, a partir de Dezembro desse ano, Stalin passou a ser "...o nosso filho da puta..." e a narrativa da memória da Europa durante os cinquenta anos seguintes ficou traçada, nos seus contornos gerais. Nessa narrativa já não havia lugar para aquela realidade, nem, em boa medida, para as centenas de milhões de seres humanos que seriam marcados por ela. Entre esses milhões, um chamava-se Chiune Sempo Sugihara; outro chamava-se Andrey Sheptytsky.
Foi naquela Europa de Molotov-Ribbentrop — o mapa acima diz respeito ao acordo final — que ocorreram a vasta maioria dos assassínios em massa, antes, durante e após a 2ª Guerra; de 1933 a 1950. Foi naquela faixa que vai desde o Báltico até ao Mar Negro que os nazis fuzilaram, mataram pela fome e gasearam as suas vítimas; foi ali que os soviéticos mataram pela fome, fuzilaram, violaram e deportaram as suas. Foi ali que as populações civis foram sujeitas a duas, na maior parte, a três ocupações sucessivas. Foi ali que soviéticos e nazis efectuaram as suas paradas militares de vitória, três pelo menos, em Brest, Lublin e Lvow (hoje Lviv).
Hoje, mais de vinte anos após a abertura dos arquivos de Leste, a narrativa bastarda do "nosso filho da puta" começa, finalmente a esboroar-se, sem deixar de persistir em muitos aspectos da nossa mente colectiva. Em meados da década passada, um grupo de artistas plásticos austríacos lançou uma campanha com o propósito de chamar a atenção para o crescimento do movimento de extrema-direita do sr. Georg Haider. O símbolo dessa campanha era uma suástica amarrotada e rasgada. Foram acusados e condenados ao abrigo da lei austríaca que proíbe terminantemente a utilização dos símbolos nazis, mesmo que o propósito seja o de os denegrir. Não passa pela cabeça de ninguém que o símbolo da foice e do martelo tenha o mesmo tratamento.
E muito bem. Nem uma dos milhões de vítimas do nazismo foi atingida por uma cruz gamada: foram fuziladas, mortas à fome e gaseadas; nem uma dos milhões de vítimas do estalinismo foram golpeadas com uma foice e um martelo: foram fuziladas, mortas à fome, violadas e deportadas de territórios onde elas e os seus antepassados tinham vivido durante séculos. Os símbolos esgotam-se no seu propósito simbólico. Todos aqueles milhões de vítimas tinham um nome. Quando hoje, e não é por acaso, alguns tentam reduzir o movimento popular ucraniano aos símbolos usados por alguns movimentos nacionalistas, estão apenas a reproduzir exactamente o mesmo processo de desumanização a que aqueles milhões de vítimas foram sujeitas; estão a dar o primeiro passo naquilo a que Hannah Arendt chamou "A construção do homem supérfluo". Hoje, como então, nenhum nome é citado. Apenas símbolos.
Mas de entre as vítimas, recordamos sobretudo os sobreviventes e aqueles que com eles se cruzaram. Chiune Sugihara foi um diplomata de carreira, como indica a página do Yad Vashem, mas foi mais do que isso. Sugihara foi um espião, treinado na Academia de Harbin, na Manchúria ocupada. Convertido à Igreja Ortodoxa russa, casou com uma mulher russa e tornou-se um especialista nas complexas relações entre o Império do Japão e a União Soviética. O pacto Molotov-Ribbentrop teve consequências imediatas no Extremo-Oriente. Tornava automaticamente nulo o pacto Anti-Komintern, o que permitiu que o exército vermelho atacasse os japoneses em Khalkin Gol, sem que Stalin tivesse que temer uma segunda frente na Europa. O governo japonês caiu, como aconteceria com vários outros nos meses seguintes. Tóquio estabeleceu um consulado em Kaunas, na Lituânia, e o russo-falante Sughiara foi lá colocado, com a missão de observar o desenvolvimento das movimentações alemãs e soviéticas. Sem uma equipa própria, usava oficiais polacos como informadores e assistentes e recompensava-os com passaportes japoneses e acesso ao correio diplomático japonês. Muitos, tinham-se apercebido que era possível fazer a viagem através da União Soviética. A partir de meados de 1940, Sugihara começou também a emitir centenas de vistos a judeus. A diferença é que estes últimos tentavam atingir o Japão, e a partir daí, os Estados Unidos por mar; os polacos preferiam a fronteira do Irão, para depois se juntarem ao Exército Polaco do Exterior. Alguns estiveram em Mont Ormel; alguns foram entregues pelos britânicos ao governo fantoche de Lublin. Sugihara afirmou, nos seus relatórios, que a Alemanha atacaria a leste em Junho de 1941. Enganou-se num mês.
Andrey Sheptytsky era o Metropolita da Igreja Católica Grega ucraniana. Acolheu os alemães como libertadores (a Ucrânia ocidental fazia parte da Polónia até ao Pacto Molotov-Ribbentrop e foi ocupada pelos soviéticos depois disso), mas muito cedo começou a criticar a sua actuação. Escreveu uma carta irada a Himmler, instando-o a não usar a polícia ucraniana na perseguição aos judeus e emitiu cartas pastorais instruindo os seus fiéis a protegerem os seus vizinhos judeus. Com o auxílio do irmão, Kliment, salvou muitos judeus. Em 1943, enviou capelães para acompanharem a divisão Whaffen-SS "Galícia".
Eric Hobsbawm foi um dos maiores historiadores do século XX. Perpétuo embaraço para a Academia Soviética das Ciências, recusou-se sempre a aceitar qualquer "linha oficial", ou a pensar sem ser pela sua própria cabeça, sem nunca por em causa o marxismo. Pela sua profissão, pela vastidão do seu conhecimento e pela postura de independência que foi sempre a sua, duma coisa podemos ter a certeza: foi pela sua própria cabeça que Hobsbawm chegou àquela conclusão monstruosa.
Estas três personagens não são comparáveis. Sugihara era o agente duma potência agressiva, ela também assassina. Apesar disso, quando as circunstâncias o colocaram perante a escolha, optou por salvar seres humanos. Sheptytsky era um aristocrata de casta militar, que via na ocupação alemã a oportunidade de concretizar uma oposição militar à próxima ocupação soviética, que se adivinhava. Apesar disso, optou por salvar seres humanos. Hobsbawm era um esteta.
Heidegger era um filósofo e apoiou os nazis. Não lhe ligaram, porque não precisavam de filósofos para nada: o nazismo era, sobretudo e acima de tudo, um discurso estético. Seja lá o que for, tem que existir alguma beleza naquela ideia de "Revolução Mundial" que justifique o sofrimento e o sangue de milhões. A única coisa que não pode existir em ambos os casos é o Ser Humano. Apenas o Horror.
N.B.: O que se segue pode ser insuportável. Eu sei!
As crianças que nasciam na Ucrânia no final dos anos de 1920 e no início dos anos de 1930 viam-se num mundo de morte, entre pais impotentes e autoridades hostis. Um rapaz nascido em 1933 tinha uma esperança de vida de sete anos. Mesmo em tais circunstâncias, algumas das crianças mais jovens conseguiam mostrar alguma alegria. Hanna Sobolewska, que perdera o pai e cinco irmãos e irmãs por causa da fome, recordava a dolorosa esperança do irmão mais novo, Jósef. Ao mesmo tempo que inchava devido à fome, não deixava de encontrar sinais de vida. Certo dia tivera a certeza de ver culturas que se erguiam do chão; noutro julgara ter encontrado cogumelos. «Agora viveremos!», exclamava, e repetia aquelas mesmas palavras antes de ir dormir, todas as noites. Depois, certa manhã, acordou e disse: «Tudo morre.»
Timothy Snyder — Bloodlands
Depressa estas situações deixaram de ser dignas de nota. Na escola de Yurii Lysenko, de oito anos, na região de Kharkiv, uma rapariga caiu, simplesmente, durante uma aula, como se tivesse adormecido. Os adultos correram para ela, mas Yurii sabia que não havia esperança, «que ela tinha morrido e que eles a iam enterrar no cemitério, como tinham enterrado outras pessoas no dia anterior e no dia antes desse e em todos os dias». Os rapazes de uma outra escola encontraram a cabeça decepada de um colega de turma enquanto pescavam num lago. Toda a família tinha morrido. Tê-lo-iam comido primeiro? Ou teria ele sobrevivido à morte dos pais apenas para ser morto por um canibal? Ninguém sabia; mas tais questões eram comuns entre as crianças da Ucrânia, em 1933.
Os deveres dos pais não podiam ser cumpridos. Os casais sofriam enquanto as esposas, por vezes com o angustiado consentimento dos maridos, se prostituíam junto dos líderes locais do partido, em troca de farinha. Os pais, mesmo quando ainda estavam juntos e agiam com a melhor boa vontade, dificilmente podiam cuidar dos filhos. Certo dia um pai, na região de Vynnitsia, saiu para enterrar um dos seus dois filhos e, ao regressar, encontrou o outro morto. Alguns pais amavam os filhos, protegendo-os, trancando-os em cabanas para os manterem a salvo dos bandos itinerantes de canibais. Outros enviavam os filhos para longe, na esperança de que pudessem ser salvos por outros. Havia pais a entregar os filhos a familiares distantes ou a estranhos e a abandoná-los em estações de comboios. Os camponeses desesperados que erguiam os filhos pequenos junto às janelas dos comboios não estavam necessariamente a pedir comida: muitas vezes estavam a tentar entregar as crianças a um qualquer ocupante do comboio, decerto um residente da cidade e que, como tal, não estava prestes a morrer à fome. Os pais e as mães enviavam os filhos para pedir na cidade, com resultados diversos. Algumas crianças morriam de fome no caminho ou chegadas ao seu destino. Outras eram levadas pela polícia para morrer no escuro, numa metrópole estranha, e serem enterradas numa vala comum com outros corpos pequenos. Mesmo quando regressavam, as notícias raramente eram boas. Petro Savhira partiu com um dos seus irmãos para Kiev, para pedir, descobrindo ao regressar que os seus outros dois irmãos já tinham morrido.
Confrontadas com a fome, algumas famílias dividiam-se, os pais viravam-se contra os filhos e os filhos uns contra os outros. Como a polícia estatal, o OGPU, se viu obrigada a relatar, na Ucrânia as «famílias matam os seus membros mais fracos, normalmente as crianças, e usam a carne para se alimentarem». Inúmeros pais mataram e comeram os filhos, tendo acabado por morrer de fome mais tarde. Uma mãe cozinhou o filho para si e para a filha. Uma menina de seis anos, salva por outros parentes, viu o pai pela última vez, enquanto este afiava uma faca para a matar. Outras combinações eram possíveis, é claro. Uma família matou a nora, deu a cabeça a comer aos porcos e assou o resto do corpo.
Contudo, num sentido mais lato, o que destruiu as famílias foi tanto a política como a fome, virando a geração mais jovem contra a mais velha. Os membros dos Jovens Comunistas serviam nas brigadas que requisitavam comida. No entanto, crianças ainda mais jovens, nos Pioneiros, deviam ser «os olhos e os ouvidos do partido no seio da família». Os mais saudáveis estavam encarregados de tomar conta dos campos para impedir os roubos. Meio milhão de rapazes e raparigas adolescentes e pré-adolescentes ocupavam as torres de vigia, observando os adultos na Ucrânia, durante o Verão de 1933. Esperava-se de todas as crianças que entregasses os pais.
A sobrevivência era uma luta moral, tanto quanto física. Uma médica escreveu a uma amiga, em Junho de 1933, que ainda não se tinha tornado canibal, mas que «não estou certa de que isso já não terá acontecido quando receberes esta carta». As pessoas boas foram as primeiras a morrer. Os que se recusavam a roubar ou a prostituir-se morriam. Os que davam comida a outros morriam. Os que se recusavam a comer cadáveres morriam. Os que se recusavam a matar os seus iguais morriam. Os pais que resistiam ao canibalismo morriam antes dos filhos. Em 1933, a Ucrânia estava repleta de órfãos e, por vezes, havia pessoas que os acolhiam. Contudo, sem comida, havia pouco que até o mais gentil dos estranhos pudesse fazer por tais crianças. Os rapazes e raparigas jaziam sobre lençóis e cobertores, comendo os próprios excrementos, à espera de morrer.
Numa aldeia na região de Kharkiv, várias mulheres fizeram o melhor que puderam por tomar conta das crianças. Como uma delas recordava, tinham formado «algo semelhante a um orfanato». As crianças que acolhiam estavam em condições miseráveis: «Tinham estômagos protuberantes; estavam cobertas de feridas, de crostas; os seus corpos rebentavam. Levávamo-las para a rua deitadas em lençóis e elas gemiam. Certo dias calaram-se de repente; voltámo-nos para ver o que se estava a passar e constatámos que estavam a comer Petrus, a criança mais pequena. Estavam a arrancar-lhe pedaços e a a comê-los. E o pequeno Petrus estava a fazer o mesmo, estava a arrancar pedaços do seu próprio corpo e a comê-los. Comeu tanto quanto pôde. Os outros miúdos encostavam os lábios às suas feridas e bebiam-lhe o sangue. Levámos Petrus para longe das bocas famintas e chorámos.»
ibidem
O canibalismo é tabu, tanto na literatura como na vida, já que as comunidades procuram proteger a sua dignidade suprimindo o registo de tão desesperada forma de sobrevivência. Os ucranianos no exterior da Ucrânia, então e até hoje, têm tratado o canibalismo como fonte de grande vergonha. Contudo, ainda que o canibalismo na Ucrânia, em 1933, diga muito sobre o sistema soviético, nada diz sobre os ucranianos enquanto povo.
idem ibidem
Existe na baixa de Manhatann um café literário chamado "KGB", local de tertúlias avant garde. Pequena provocação no género chic, nada demais. Ninguém em seu perfeito juízo imaginaria fazer o mesmo num local chamado "Gestapo". Óptimo! Agora falta o resto. Falta o mesmo peso do mesmo opróbrio. Ninguém pode dizer "Nós não sabíamos..."
Não terás outros deuses ante a Minha face.Exodus 20 2-17
As necessidades dum povo nómada, vivendo na margem dos grandes desertos, são simples e limitadas. Algumas direcções, apenas; para onde conduzir os rebanhos; onde encontrar água e locais para pernoitar. As necessidades dum estado moderno têm uma complexidade que seria incompreensível para os seus antepassados, contudo, podem ser enunciadas com a mesma simplicidade: "A quinta colectiva fornece o Estado e só depois o povo". Foi assim que os activistas do partido comunista da Ucrânia enunciaram e difundiram aquilo a que chamaram «O Primeiro Mandamento de Stalin», no início da década de 1930.
Em "O Arquipélago de Gulag", Alexander Solzhenitsyn cita um velho provérbio russo: "Não devemos olhar o passado. Aquele que olha o passado perde um olho." e acrescenta logo a seguir "E aquele que o esquece perde os dois". A história dos povos é feita destes esquecimentos selectivos; a sua memória colectiva tem, em grande medida, o propósito de permitir aos sobreviventes superarem os traumas dos eventos que eles próprios viveram, ou aqueles de que ouviram falar. A memória colectiva da Europa impõe hoje, como condição sine qua non de pertença, o reconhecimento formal do Holocausto. Os europeus passaram algumas décadas em tratamento oftalmológico intensivo, para, em boa medida, acabarem com óculos de lentes espessas e convenientemente rosadas. Convenhamos, a imagem industrial do Holocausto nazi, é a perpetuação duma falsidade. É a tentativa de perpetuar o mito da "competência técnica alemã", a realidade do genocídio foi essencialmente artesanal, sem ser menos assassina por isso. Começou muito mais cedo do que a versão oficial regista. Os Ucranianos chamaram-lhe Holodomor, ou extermínio pela fome.
Porque eu, o Senhor vosso Deus, sou um Deus invejoso e trarei os crimes dos pais sobre os seus filhos e os filhos dos seus filhos, até à terceira e quarta geraçõesibidem
Os camponeses da Ucrânia tinham aceite o estado bolchevique, porque este lhes tinha permitido libertarem-se dos grandes proprietários tierra-tenientes. Mas de repente tinham passado a ser inimigos de classe, kulaks ricos (em muitos casos, o seu capital reduzia-se a um porco ou uma vaca) e alvos a destruir.
Foram erigidas torres de vigia nos campos para impedir que os camponeses tomassem qualquer coisa para si. Só na região de Odessa, foram construídas mais de setecentas torres de vigia. As brigadas [de activistas do partido comunista] iam de casebre em casebre, mais de cinco mil membros nas suas fileiras, apoderando-se de tudo o que conseguissem encontrar. Os activistas usavam, como recordou um camponês, «longas varas metálicas para procurar em cavalariças, pocilgas, fogões. Procuravam por todo o lado e levavam tudo, até aos mais ínfimo grão». Atravessavam as aldeias «como a peste negra» gritando «Camponês, onde está o teu cereal? Confessa!». As brigadas tomavam tudo o que se parecesse com comida, incluindo o jantar sobre o fogão, que eles próprios comiam. Como um exército invasor, os activistas do partido viviam da terra, tomando o que podiam e comendo até estarem cheios, obtendo poucos resultados do seu trabalho para além da miséria e da fome.Talvez devido a sentimentos de culpa, talvez devido a sentimentos de triunfo, humilhavam os camponeses onde quer que fossem. [...] Mulheres apanhadas a roubar numa quinta colectiva foram despidas, espancadas e arrastadas nuas através da aldeia. Numa aldeia, a brigada embebedou-se no casebre de um camponês e os seus membros violaram, à vez, a filha deste. As mulheres que viviam sozinhas eram rotineiramente violadas, de noite, sob pretexto de confiscação de cereais... e, de facto, depois de violarem os seus corpos, levavam-lhes a comida. Este era o triunfo de Stalin e do seu Estado. Timothy Snyder — Bloodlands
Um deus invejoso, sem dúvida. Pela primeira vez na história, no meio duma fome generalizada, as cidades sobreviviam melhor do que os campos que as rodeavam. Invejoso e sádico, mas cheio de imaginação. Os refugiados camponeses não estavam de facto a pedir pão, mas sim, envolvidos num complot contra-revolucionário, oferecendo-se como propaganda viva para a Polónia e outros estados capitalistas que desejavam desacreditar as quintas colectivas. À medida que o sucesso da grande reforma socialista se aproximava, os seus inimigos, levados ao desespero por esse sucesso, imolavam-se pela fome, para o tentarem sabotar.
Mas mostrarei o Meu amor àqueles que seguirem a Minha palavra e obedecerem aos meus mandamentos.idem ibidem
Tal como o velho provérbio russo nos lembra, há sempre quem pense que os demónios ficam guardados em segurança nos armários onde os tentamos trancar. Mas eles teimam em regressar, não é verdade, Vladdy?. Ou talvez os cidadãos de países democráticos sejam de facto idiotas que odeiam aquilo que têm. Ou talvez aquele "amor" dos deuses sádicos dure pouco. A verdade simples é que temos sempre o olho da mente para usarmos desde que estejamos dispostos a fazê-lo. E a verdade ainda mais simples, é que, dos dois grandes assassinos do século XX, Adolfo Hitler nunca enganou ninguém, nem nunca pretendeu ser outra coisa senão um monstro racista; até os seus propósitos genocidas estavam já razoavelmente enunciados nas leis da "higiene racial", da eugenia e da eutanásia. O outro, embrulhou-se no manto da "libertação" — categoria escatológica distinta da "liberdade", note-se — e do "progresso social"; e da "felicidade dos povos". Será que estes mantos desculpam, de alguma forma os seus seguidores? Ou será apenas a crença naquela promessa?
O conhecimento dos crimes nazis levantou a pergunta inevitável, isto é, "O que é que os alemães sabiam?". O péssimo espectáculo recente do Vladdy torna a outra pergunta de novo urgente: "O que é que os comunistas sabiam?". Desconfio que vai ficar tão mal respondida como a anterior, mas não é menos incontornável por isso.
Ora eis que o mundo encontrou um tema de discussão mais excitante do que o pontapé-na-bola, ou seja, a Ucrânia e mais exactamente a invasão (!) da Crimeia. A qualidade lógica dos argumentos é muito semelhante, sendo que a sua forma geral tem a seguinte forma: "Se Iraque então Crimeia; Iraque, logo, Crimeia". Não vou discutir a falácia, ainda corria o risco de estragar a emoção que a (dis)puta manifestamente produz. Nem uma palavra a respeito do "et tu quoque". Vou apenas fazer notar que, em termos bíblicos, poderíamos dizer de forma logicamente equivalente "Se Adão então Caim; Adão, logo, Caim", et voilà, todos os pecados e crimes da história explicados e justificados no milagre duma falácia elementar.
Mas isso iria estragar a emoção dos golos mais recentes, das peripécias da arbitragem — ou neste caso da sua ausência — e, sobretudo, da incerteza a respeito do resultado final, aquele que vai contar para os livros de história, ou da FIFA, vai dar ao mesmo. Vou apenas referir um dos aspectos mais referidos pelos..., analistas, digamos. Estou-me a referir à fraqueza geo-estratégica dos Estados Unidos, incluindo mas não limitado a, fraqueza da sua liderança, isto é, a tese "...O Obama é um banana. O Putin é um líder forte...". Quem é que os tais anal(istas) preferem no domínio estrito do pontapé-na-bola? Na actualidade, o Cristiano Ronaldo baralha tudo e elimina toda e qualquer informação pertinente que a comparação pudesse conter. Adiante.
A única super-potência restante à superfície do planeta está efectivamente num situação de grande impotência, do ponto de vista militar. E ainda bem, acrescento eu. Mas isso não se deve a nenhuma crise de vontade, nenhuma falta de liderança. Deve-se a algo mais simples — e acho que o falcão McCain, ele próprio ex-piloto da Marinha, também não viu — deve-se à geografia. Qualquer escalada militar da confrontação, por parte dos USA, implicaria sempre o envio duma esquadra para o Mar Negro. Os porta-aviões da classe Nimitz são 33 metros mais compridos do que o comprimento máximo possível/permitido nos estreitos dos Dardanelos e do Bósforo.
Ou seja, a crise actual ainda não descambou em confrontação quase aberta, graças àquelas curvas apertadas, na imagem acima. Mas vamos aos factos, porque no que respeita às análises, essas oscilam apenas entre os silogismos do Tadeu e a californicação do Tavares.
E os factos são que o Vladimir pestanejou. É rigorosamente como se o Adolfo tivesse pestanejado em Munique. Nenhum de nós tem como saber o que seria o mundo se isso tivesse acontecido, mas quem quer que tenha um mínimo de conhecimentos da história do nosso tempo, sabe que muita coisa teria sido diferente, não digo sequer que seria diferente para melhor. Diferente, de certeza. Por isso, Vladimir, vai brincar como os teus foguetes, vai. Já muitos perceberam o que eu disse, tanto que os teus sabujos já andam por aí a preparar a justificação da retirada. Quanto aos istas cá do burgo: consolem-se, a selecção joga hoje, o fcp vai ter um novo treinador, isto é, o vosso mundo vai voltar à chatice do costume.
No final do século XIX, houve um historiador inglês que se lamentou de, para estudar as comunidades cossacas na região de Lviw, ter que dominar o polaco, o ukraniano, o moldavo, o yiddish, o russo e o arménio; comentou que para fazer o mesmo estudo algures na bacia do Don lhe bastava saber falar russo...
O mesmo poderia ser dito a respeito daquela 'Europa do Meio' que se estende geograficamente do Báltico aos Cárpatos e ao Mar Negro. Deste lado da Europa, tudo estabilizou relativamente cedo; a Península Ibérica manteve muito exactamente as suas fronteiras actuais, após a conquista de Granada, em finais do século XV. A Europa central foi, durante séculos, um mosaico étnico e linguístico complexo, e a sua história política é, em boa medida, a historia dos compromissos que aquele mosaico exigia. Enquanto os dois grandes imperialismos (e totalitarismos) da Europa continental foram mantidos sob controlo. Quando deixaram de o ser, primeiro aliaram-se e depois degladiaram-se numa guerra de extermínio mútuo.
Terras de Sangue de Timothy Snyder conta-nos essa história. Surpreendente em muitos aspectos, sobretudo para aqueles como eu que ainda consideravam que o genocídio nazi tinha sido uma construção industrial demoníaca, mas relativamente restrita no espaço. E conta-nos como os dois bigodudos à compita pelo título de maior assassino de massas do século vinte transformaram esse aspecto da sua actividade em ocupação diária, no caso do grande pai dos povos, durante 15 anos.
Hitler ganhou o título. Por uma margem menor do que muitos julgam, mas ganhou-o. Houve um outro campeonato em que, pelas suas características espácio-temporais mais vastas, os nazis não chegaram a ser competidores sérios. Estou a falar da limpeza étnica, título maior e indiscutível de Stalin. A uniformidade étnica e linguística que hoje existe na maior parte da Europa é o resultado da acção daqueles dois, embora em minha opinião, para compreendermos este segundo fenómeno e a maneira como fez a Europa tal qual é, seja necessário recorrer a algo mais vasto do que o trabalho de Timothy Snyder.
Resta um único exemplo daquele mosaico complexo que a Europa já foi, é a Ucrânia e os ucranianos não parecem nada dispostos a deixarem-se "normalizar". E por isso, àqueles que hoje ecoam as mentiras do homem em imitação ferrugenta do aço que se conseguiu arranjar, digo-lhes apenas para irem para a putin-que-os-pariu. Ou será que alguém com dois dedos de testa não percebeu o que significa a presteza com que o tiranete de Moscovo aceitou o convite alemão para conversações?
Give me back the Berlin Wall Give me Stalin and St. Paul I've seen the future, brother And it is murder.Leonard Cohen — The Future
Que alguém defenda o pastorinho das aparições de Caracas, é ridículo mas ainda consegue ter piada; que alguém defenda os santinhos de Havana, é provavelmente apenas mais um exemplo daquela contabilidade privada com os beatos da sua devoção, que Eça nos contou como os portugueses não resistem a manter, o caruncho sendo apenas mais um activo no deve e haver respectivo. Que alguém defenda o tirano de serviço em Pyongyang entra directamente no campo da obscenidade, mas enfim, trata-se de um pequeno país de bilhete postal, longínquo e misterioso, o equivalente moderno dos principados balcânicos do início do século vinte, mais não sendo do que a luta do pobre Joe Dalton, vítima do raquitismo, contra o malandro do Lucky Luke e só mesmo o Jolly Jumper para se dar conta dos erros de script.
Agora, aqueles que a respeito da Ucrânia mártir, não conseguem nem querem perceber que "o Coelho" é apenas um micro-Putin, entram directamente numa categoria escatológica bem definida, os coprófagos, isto é, aqueles que comem merda e gostam do sabor. Estão muito bem acompanhados: por mais que se esforcem, nunca vão conseguir chegar aos calcanhares deste fulano.
Jean-Paul Sartre. O exemplo mais acabado da profundidade que a esquizofrenia organizada do cérebro humano consegue atingir. O autor de "Os Caminhos da Liberdade"" foi o mesmo que lia calmamente L'Humanité pelas esplanadas de Paris — o órgão oficial do PCF publicou-se livremente até ao início do Verão de 1941 (mais de um ano após a rendição da França) -- e que, quando questionado a respeito do andamento da guerra, respondia "Ça ne me concerne pas". Será que o dizia "Com a morte na alma"? Ninguém o registou, sabemos apenas que o fazia "...para não atraiçoar os trabalhadores", fosse lá o que fosse que isso queria dizer.
Jean-Paul Sartre é o epítome da coprofagia europeia, que conseguiu muitas vezes atingir o génio, sem nunca deixar de exibir a sua natureza fecal. Quando pelo fim da Primavera de 1968, os operários dos complexos fabris da Renault nos arredores de Paris regressaram ao trabalho, os "revolucionários" da Sorbonne foram de férias. Em Agosto, quando os tanques soviéticos se passearam pelas avenidas de Praga, estavam, literalmente, de férias. E no fim de contas, aqueles eram os tanques bons. Nada de generalizações: "Que venez-vous faire Camarade / Que venez-vous faire ici / Ce fut à cinq heures dans Prague / Que le mois d'août s'obscurcit" — Jean Ferrat, Camarade" Há uma precisão que não pode deixar de ser feita. A coprofagia não é uma doença de toda a Esquerda. Nas suas formas mais extremas, fica circunscrita ao "comunismo oficial" e àquela categoria histórica tão especificamente europeia como os Alpes, que são — essencialmente, foram — os compagnons de route. Os sectores não comunistas nunca atingiram esta profundidade, ficando-se sempre pela sua estirpe mais suave e muitas vezes com imensa piada, do anti-americanismo. Uma relação análoga à da varíola com as bexigas doidas. Também as tive e recordo-me perfeitamente de o médico me dizer que aquela forma atenuada (para além da vacina, claro) era a melhor garantia de nunca vir a ter problemas com o maior assassino da história da humanidade. No fim de contas, esta é provavelmente a conclusão importante: não há muito de errado nas doenças infantis, desde que façam parte do processo de maturação e não deixem marcas permanentes.
Este devia ser um livro importante. O livro que faltava. Não é, o "livro que faltava" continua em falta. Durante anos, li múltiplos excertos, vi os muito interessantes vídeos de promoção, até que disse para mim mesmo "...é desta".
E o primeiro contacto não podia ser melhor. "A doutrina do choque" de Naomi Klein, na edição portuguesa da Smartbook tem um buraco na capa, tal como teria sido provocado por uma bala. O início da "Introdução" já o conhecia, daqueles excertos que referi e apenas renovou o meu sentimento de asco perante a exibição do Mal. O Mal existe. No meio da destruição cataclísmica de Nova Orleães, resultante do furacão Katrina — e em grande medida, da incompetência do Governo de George W. Bush — Milton Friedman descortinou uma oportunidade, "[...]a oportunidade de reformar de forma radical o sistema educativo", acabando com as escolas públicas e substituindo-as por um sistema de vouchers, a serem gastos em "instituições privadas", realizando assim "[...]uma reforma permanente.", fim de citação.
Não sei se o "Tio Miltie" tinha "666" gravado no meio da testa, mas sei que a sua invocação me faz desejar que o Inferno exista, para que ele lá esteja a apodrecer em agonia permanente, até à consumação dos séculos. Mas sei também que a hipótese razoável é que Friedman não tenha sido a Besta do Apocalipse. Apenas uma grandessíssima besta.
Agora, e para entrar no tema deste post, uma besta sem dúvida, mas não um calão. Porque uma das doenças infantis da esquerda é a sua óbvia e manifesta preguiça intelectual. Comecemos pelas palavras. A designação mais comum para a narrativa dominante é a de "neoliberalismo" (baralha por completo os americanos e Naomi Klein dedicou alguns parágrafos a tentar superar o "ruído" gerado), substituída por vezes por "ordoliberalismo", germanismo obscuro e, tanto quanto me consigo aperceber, sem qualquer interesse. Os seus adeptos chamam-lhe "doutrina (ou síntese) neoclássica".
Ora para que algo possa ser "neoclássico", tem primeiro que ter existido algo como uma Teoria Clássica. E existiu. A expressão foi inventada por John Maynard Keynes para designar o conjunto de teorias económicas que ele próprio tinha ensinado durante muitos anos. Vejamos a sua síntese:
[...]O facto de os seus preceitos, aplicados à prática serem austeros e por vezes intragáveis, deu-lhe uma aura de virtude. O poder sustentar uma superstrutura lógica vasta e coerente conferiu-lhe beleza. O poder explicar muitas injustiças sociais e crueldades aparentes como incidentes inevitáveis da marcha do progresso, e mostrar que, em geral, as tentativas de modificar esse estado de coisas provavelmente causaria mais danos do que benefícios emprestou-lhe autoridade. O ter propiciado alguma justificação para a liberdade de actuação do capitalista individual atraiu-lhe o apoio das forças sociais dominantes, agrupadas atrás da autoridade.
O que falta nesta descrição para descrever a tal "neo-síntese"? Teríamos que acrescentar o zelo evangélico, o extremismo da crença absoluta e a confiança em "leis inexoráveis", mas não muito mais. Talvez não seja preciso dizer mais do que isto:
Quem, como eu, acreditar que a liberdade do intelecto é o principal motor do progresso humano, não pode deixar de se opor a [...] tanto como à Igreja de Roma. As esperanças que [...] inspiram, são, no essencial, tão admiráveis como as que são instiladas pelo Sermão da Montanha, mas são sustentadas tão fanaticamente num caso como no outro e igualmente susceptíveis de produzir os mesmos danos.
E fica resumido o essencial. Quem tiver curiosidade em saber quais são as expressões em falta ([...]), pode lê-las no original, livremente disponível no Projecto Gutenberg. Mas fica o mais importante por dizer. Por mais asquerosas que as suas posições e o seu evangelismo tenha sido, e foi, Milton Friedman foi um professor de economia. E o seu trabalho académico foi vasto, discutível e árduo. Podemos dizer, como o fez Paul Krugman, que John Maynard Keynes foi uma espécie de Martinho Lutero da ciência económica e que Friedman foi o inevitável Inácio de Loyola, mas continuamos apenas no domínio da analogia e da metáfora. A verdade — como Naomi Klein reconhece — é que os alunos do "Tio Miltie" não eram animados a bajular o mestre, mas a criticá-lo com toda a severidade e energia que conseguissem reunir. As expressões operativas, aqui, são "trabalho vasto" e "trabalho árduo". Vejamos a sua contraposição.
A respeito de como organizar a economia dum estado socialista, V.I. Lenin escreveu em Estado e Revolução: "Não conheço nenhum socialista que tenha tratado destes problemas[...]", porque "[...]nada se consegue encontrar [a este respeito] nos textos dos bolcheviques nem sequer dos mencheviques" e tudo isto porque "dificilmente se encontra na obra de Marx uma palavra sobre a economia do socialismo". Então essas obras e esses textos são a respeito do quê? Resposta: o zelo evangélico, o extremismo da crença absoluta e a confiança em "leis inexoráveis". Claramente, não chega!
Deve ser explicado claramente aos Alemães que a guerra cruel conduzida pela Alemanha e a resistência fanática dos nazis destruíram a economia alemã e tornaram inevitáveis o caos e o sofrimento e que os Alemães não podem evitar a responsabilidade pelo que lhes aconteceu. A Alemanha não será ocupada com um propósito de libertação, mas como uma nação inimiga derrotada — Henry Morgenthau Jr.
Em A casa dos mortos, o ensaio que fecha aquela obra monumental que é o Pós-Guerra, Tony Judt conta-nos como o reconhecimento do Holocausto — e de outros holocaustos menores — se tornou a condição sine qua non para que os povos e os países possam ser aceites como pertencentes à Europa. E sumariza aquela conclusão surpreendente, mas já repetidamente ilustrada ao longo da obra, de como aquele reconhecimento é recente. A França recusou-se a falar em "crimes contra a humanidade" até finais dos 1980's; os governos da antiga europa soviética fizeram-no apenas já este século; Primo Levi foi traduzido para francês apenas após a sua morte.
Foram os alemães os primeiros a fazê-lo. Em finais dos anos 70: "Até 1968 tinham-se registado apenas 471 visitas de estudo a Dachau [é um subúrbio de Munique]; no final dos anos 70, este número tinha excedido, em muito, as cinco mil por ano.", op. cit.; "Holocausto" foi vista por cerca de 20 milhões de alemães. As políticas de "desnazificação" dos anos imediatamente a seguir à guerra foram um fracasso absoluto. Uma conclusão irrecusável e surpreendente, pelos menos para mim que sempre estive convencido do contrário. Porque a este respeito, a pergunta essencial é "Para os alemães, quem foi Joseph Stalin?" e a resposta: o santo protector que os livrou de Henry Morgenthau. A directiva JCS 1067 (Joint Chiefs of Staff) regulou o governo da zona de ocupação americana até 1947, altura em que o Plano Marshall começou a ser elaborado. Os "Morgenthau Boys", dominantes no governo da zona americana, demitiram-se em massa, quando a directiva JCS 1779 entrou em vigor. Contudo, a vasta maioria dos alemães não recorda ter sido punida pelo seu apoio ao nazismo. Eles acham que foram remunerados por terem estado na linha da frente da Guerra Fria. Têm razão.
Mas vamos fechar este assunto. Tony Judt dá-nos mais uma peça de informação essencial: o Plano Marshall foram cerca de 15 000 milhões de dólares (da época); o montante extorquido pelos soviéticos dos países de leste (incluindo a Checoslováquia!), a título de compensações de guerra, foi muito aproximadamente o mesmo. Se algo mais necessitar ser dito a este respeito, não só não sei como o fazer, como não estou interessado em fazê-lo. Recordemos apenas as décadas de trampa de Éluard a Sartre, e a respectiva contraposição vertical: Albert Camus!
Aquilo que hoje nos leva de volta à casa dos mortos é diferente e é algo que os povos da Europa decidiram que não querem discutir e é algo que nós, portugueses, estamos a conhecer pela primeira vez. Estou a falar da colaboração. Não necessita ocupantes, apenas colaboracionistas. Gaspares decididos a "irem mais além" do que aquilo que lhes é pedido. Aquilo que os colaboradores do presente estão a fazer é o mesmo que os seus antepassados de toda a Europa fizeram. Solícitos, dedicados, sempre tentando antecipar aquilo que os seus "protectores" pretendem.
Temos pouco de Europeus. Para dizer a verdade, nem sequer temos a certeza de querermos ser Europeus. Não aprendemos nada com os erros e os problemas da Europa. Hoje, no momento em que somos a cobaia, a antecipação do continente que está para vir, ninguém nos ouve e pelo pior dos motivos: não temos nada para dizer. Pelo menos, nada que os outros Europeus não queiram esquecer.
O que será que transforma o assunto do aquecimento global numa espécie de «teste do papel de tornessol», que separa as pessoas de bem daquelas que o não são? Não faço ideia, porque, se alguém me perguntasse, começaria sempre por dizer que existem aqui assuntos com um elevado potencial de confusão. Comecemos pelo princípio, pois.
«Aumento de temperatura média» é uma das poucas formas humanamente inteligíveis para referir as quantidades astronómicas de energia envolvidas.
Muitas pessoas, ou quase todas, manifestam uma dificuldade real em se relacionarem com fenómenos que estão manifestamente muito longe da sua experiência quotidiana, sem que esta dificuldade as transforme em pessoas de mal.
Existem apenas três processos de transmissão de calor. Quando fazemos passar uma corrente de ar através do radiador dum automóvel, estamos a utilizar o mais lento e menos eficaz de entre eles: o processo de condução, que segue leis lineares entre paredes planas e leis logarítmicas entre paredes curvas; muito mais eficaz (e mais rápido), é o fenómeno que ocorre sempre que uma massa de qualquer fluído é sujeita a diferenciais de temperatura, ou seja o processo de convecção, que segue leis quadráticas; o processo de radiação segue leis quárticas e a transmissão de energia ocorre a uma muito elevada percentagem da velocidade da luz. Será que dá para começar a perceber porque é que a acção humana consegue perturbar e de forma muito rápida o equilíbrio entre a radiação incidente e a radiação rejeitada para o espaço?
A energia de um fotão é proporcional à quarta potência da temperatura absoluta do corpo emissor (daí o ponto anterior). 99% da atmosfera são moléculas simétricas, dois átomos de oxigénio, ou de azoto, unidos um ao outro por uma ligação covalente; estas moléculas são virtualmente transparentes em todas as bandas de energia.
Depois fica o 1% restante, uma parte do qual são as moléculas assimétricas, como o dióxido de carbono, responsáveis pelo efeito de estufa: são opticamente transparentes na banda do visível (alta energia - baixo comprimento de onda) e opacas à «radiação térmica», grosso modo, a partir dos 288 ºK (a temperatura média da superfície dos oceanos). A radiação de corpo negro resultante do aquecimento da superfície, das construções, do relevo, «não sai», literalmente.
Veja-se que, sem efeito de estufa, não existiria vida à superfície da Terra, porque a atmosfera seria um imenso lago de azoto líquido. Não é o «efeito de estufa» (que tem sempre que existir, com atmosferas como a terrestre) que está em causa; o que está em causa é o desequilíbrio induzido pela actividade humana. E este é o ponto em que o tal «teste do papel de tornessol» começa a actuar...
A Teoria do Corpo Negro Radiante permite-nos usar um vocabulário unificado, ou seja, uma qualquer emissão pode ser descrita pela temperatura absoluta do emissor. A luz visível anda entre os 3000 ºK da cromosfera e os 6000 ºK da fotoesfera; aquela radiação térmica começa abaixo dos 300 ºK (oceanos), prolonga-se pelos trezentos e poucos das massas verdes do planeta, até cerca dos 315 ºK (a temperatura corporal dos mamíferos superiores). Qual é a temperatura dos gases à saída do tubo de escape dum automóvel? Ou da chaminé duma fábrica?
Este é o ponto em que o Sherlock Holmes se recusou a aceitar o caso da antropogénese: «Caro Holmes, não há aqui mistério. O(s) culpado(s) deixam impressões digitais por tudo quanto é sítio...» Vamos resumir: não existe nenhuma fonte estacionária de radiação entre os 350 ºK e os 550 ºK, para além da actividade industrial humana.
Não gosto de muitas das abordagens deste assunto. A minha terá pelo menos tantos defeitos como aqueles que encontro em outras. Mas algo subsiste. Estamos a falar de energia; os vórtices polares são energia, as tempestades marítimas são energia, os ventos ciclónicos são energia. Ninguém (em seu perfeito juízo) disse que «aquecimento global» significa que as temperaturas reais vão aumentar este ou aquele valor. Logo, a partir de certo ponto, aquilo que fica não são confusões; isto NÃO é uma confusão: é uma pessoa de mal. E já agora, as moreias frontais dos glaciares que restam, no hemisfério Norte, estão neste momento a avançar. Depois, lá pela primavera, vai recomeçar o parto dos icebergs...
Quando abordamos um qualquer problema difícil, uma forma de começar consiste em verificar o que é que as autoridades nessa área dizem a tal respeito. Ora, o Livro do Génesis diz-nos que Adão foi feito a partir do barro e que Eva foi depois feita a partir duma costela de Adão.
Independentemente do que cada um pensar a este respeito, é claro neste ponto que estamos perante a descrição de processos de criação a partir de matéria pré-existente, ou seja, criação ex materia.
Então e o resto? O mundo, os céus infinitos e as estrelas do firmamento, foram feitos a partir de quê? Neste ponto, e para não descartarmos os benefícios do método adoptado, a única coisa que podemos afirmar é “. . . a fonte citada é omissa”.
O que, por sua vez, levanta imediatamente a questão . . . omissa porquê? Duas respostas razoáveis ocorrem quase imediatamente ao nosso espírito, a mais curta das quais é que, pura e simplesmente, o assunto não nos diz respeito. Não seria difícil imaginar Moisés, no cume do Sinai, fazendo tal pergunta, apenas para obter aquela resposta. Igualmente razoável, é que o espírito humano seja demasiado limitado para abarcar um tal assunto. Em ambos os casos, Moisés pegaria nas Tábuas da Lei e iria à sua vida.
Acontece que todas as religiões reveladas têm dogmas implícitos, mais importantes do que os explícitos, um deles sendo que a Revelação é completa. Completa, como, de forma mais literal ou de forma mais simbólica, é assunto que pode ser discutido ad aeternum. A completude da revelação não, pois levantaria imediatamente a dúvida sobre o que mais não teria sido revelado, o que imediatamente colocaria em causa o poder dos assistentes profissionais ou adventícios das diversas divindades, logo, aquela primeira resposta é completamente inaceitável.
Outro desses dogmas implícitos é o da inteligibilidade: a revelação é inteligível; de forma mais simbólica, ou de forma mais literal, de novo, pode sempre ser discutido. A inteligibilidade não, porque isso transformaria imediatamente a revelação em terapia ocupacional para atrasados mentais, inutilizando aquele poder profissional, já anteriormente referido.
Foi por tudo isto que os teológos chegaram a um consenso absolutamente inusitado (embora só ao fim de discussões furiosas, claro): o resto, o mundo, os céus infinitos e as estrelas do firmamento foram criados ex nihilo. Literalmente, a partir do nada. Mas se o consenso é inusitado, não é menos curioso que tal concordância tenha sido decidida ser de ocultar do comum dos mortais. No fim de contas, que ser humano, em seu perfeito juízo, iria aceitar que algo possa ser criado a partir de rigorosamente nada?
O facto simples, é que o senso comum está errado. Tudo o que é realmente importante no Universo, é criado ex nihilo. Como é criado o conhecimento? Resposta: a partir de informação. Mas estamos apenas a alongar o problema: como é criada a informação? Resposta: a partir de comunicação, e voltámos rigorosamente ao ponto de partida. Como é criado o dinheiro? Vamos quebrar o círculo vicioso: Como é criada a entropia? Resposta: ex nilhilo, é o resultado da própria textura do Universo e temos que concluir que este é um Universo interessante.
A resposta à pergunta “o que é o dinheiro e como é criado?” é que se trata apenas de entropia. E esta resposta mais não é do que trivial, interessante apenas para tentar responder à pergunta O que é a inflação? Lá iremos, a seu tempo. Para já, o facto simples é que estes assuntos nos colocam perante uma escolha essencial, escolha essa que ninguém irá fazer por nós e que nós fazemos, mesmo se ou quando escolhemos não escolher. P.W. Atkins, tal como citado em [12, Leff, 1999], chamou- lhe “Severidade e Flacidez”:
Tal é a severidade do critério que a ciência estabelece para si própria. Se formos honestos, temos que aceitar que a ciência só poderá reclamar sucesso completo, se conseguir aquilo que muitos considerarão impossível: explicar e emergência de tudo a partir de absolutamente nada. Não “quase-nada”, nem sequer de uma poeira sub-atómica, mas absolutamente nada. Nada de nada. Nem sequer espaço vazio.
Veja-se como isto difere da suave flacidez do argumento não-científico, o qual normalmente não possui qualquer critério externo de sucesso, para além do aplauso popular ou a resignação da aceitação não-pensante. Um argumento tipicamente adiposo, no seu arqui-antireducionismo, poderá ser que o mundo e as suas criaturas foram criadas por algo chamado Deus e que isso é tudo o que há para dizer. Veja-se que a afirmação pode ser verdadeira e não tenho como provar que não é. Contudo, não passa de uma paráfrase da afirmação ‘o universo existe’. Para além disto, se lermos naquela explicação um papel activo para o tal Deus, então é uma explicação excepcionalmente complexa, embora pareça simples, pois implica que tudo ou quase tudo (mesmo que o Deus não tenha fornecido mais do que electrões e quarks), teve que ser produzido inicialmente.
Por isso, caro leitor, faça a sua escolha: severidade ou flacidez?
Gostaria de convidar os leitores a deterem-se nas poucas páginas deste capítulo. Em toda a minha vida, é a primeira vez que encontro uma formulação matematicamente correcta daquela ideia a que, há milhares de anos, se calhar desde sempre, chamamos liberdade. A configuração dos "três produtores" é a mais simples que permite a sua existência; liberdade económica, mas feita esta precisão, não necessitamos de a repetir. Consideremos a configuração imediatamente anterior (com cardinalidade imediatamente inferior): é a proverbial condição de Robinson Crusoe e do Sexta-Feira, sozinhos na sua ilha isolada. Atente-se que é completamente irrelevante que vivam numa condição de igualdade absoluta ou que um escravize o outro. Para que qualquer troca económica possa ser levada a cabo, quer seja o acto de pescar, a recolha de frutos ou de água potável, ou a confecção das refeições, têm que estar sempre de acordo e de acordo quanto ao papel que cada um desempenha nessa troca mútua. É igualmente irrelevante que ambos existam num estado de satisfação psicológica com a sua própria condição. Nenhum deles tem realmente, de facto, qualquer alternativa (para além da míngua e do desespero, claro). A condição circular dos "três produtores" pode na realidade englobar todos os cidadãos da mesma zona económica (por conveniência de exposição, deixemos para já de lado os círculos que se fecham pela importação ou exportação, através de duas ou mais zonas económicas), mas esse facto não lhe adiciona qualquer complexidade extra. Esta complexidade ocorre «no tempo», com a substituição de gerações. É neste aspecto que a pergunta de Thomas Paine se torna essencial. Recordemo-la, pois:
Aqueles que já deixaram este mundo e aqueles que ainda não existem, estão à maior distância uns dos outros que a imaginação humana pode conceber: que possibilidade de obrigação poderá existir entre eles?
Que regra ou que princípio pode ser formulado para que de dois seres imaginários, sendo que um deixou de existir e o outro ainda não existe, e que nunca poderão encontrar-se neste mundo, um possa dominar o outro até à consumação dos séculos? «Os Direitos do Homem» 1791 Thomas Paine (1737–1809)
Uma vez que uma qualquer comunidade tenha sido capaz de estabelecer a necessidade de uma moeda comum, apesar dos seus desacordos fundamentais quanto àquilo a que os seus membros atribuem valor ou não, fica por resolver um problema fundamental para a definição dessa moeda. Reduz-se à resolução do problema espácio-temporal dos três produtores que se enuncia da seguinte forma:
X, Y , e Z, produzem respectivamente os valores Vx, Vy e Vz. X pretende obter Vy, Y pretende obter Vz, e Z pretende obter Vx.
Constatamos de imediato que as trocas não podem ser feitas bilateralmente, mas apenas de forma circular. Como, aliás, é perfeitamente possível que X não atribua qualquer valor a Vz, Y a Vx, e Z a Vy (princípio de relatividade), nenhum dos bens ou serviços produzidos pode servir como medida comum. Este é o ponto fundamental, que implica que a moeda tenha que ser definida numa base independente dos valores produzidos por cada um deles.
O problema existe também no domínio do tempo, no qual os indivíduos, os seus produtos e as suas necessidades evoluirão ou mudarão de natureza, e serão progressivamente levados a desaparecer ou a serem substituídos por outros. Continua a ser indispensável manter, em todas as circunstâncias, a possibilidade de trocar de forma conveniente, a produção duns e doutros, a fim de satisfazer as suas necessidades, elas próprias em evolução.
Portanto, «ao longo do espaço» (para um tempo de evolução curto « dt»), os valores não são reconhecidos ou aceites pelos seus produtores de forma bilateral, e impõem a necessidade de trocas circulares, mas igualmente, «ao longo do tempo», os indivíduos e os valores que eles produzem alteram-se por completo.*
Verifica-se que, para um período de tempo suficientemente curto, podemos constatar uma certa estabilidade. Existe, contudo, uma evolução contínua dos parâmetros económicos, logo da moeda que pretendemos definir, o que permite aos produtores, presentes em cada instante e pelo menos durante esse período de tempo curto, estarem de acordo a respeito do seu instrumento de troca circular.
Igualmente, e como iremos demonstrar de seguida, por forma a sermos coerentes com os fundamentos propostos, apenas uma quantificação puramente matemática das trocas, independente de todo e qualquer bem ou serviço de referência, é aceitável para os actores do problema dos três produtores.
Este resultado não diminui em nada o valor da moeda, pois, embora de natureza puramente matemática, a sua quantidade total continua limitada em cada instante. O poder de compra que representa, continua assim limitado pelo preço para além do qual os produtores não poderiam trocar os seus produtos, por falta de dinheiro em circulação.
Uma vez o problema formulado, iremos agora analisar as soluções convencionais e os problemas que essas soluções geram, antes de abordarmos a solução relativista propriamente dita.
*Recordemos que espaço designa o conjunto dos cidadãos duma zona económica, activos durante o respectivo período de vida, e tempo designa a sucessão das gerações.
Não se pode estudar seriamente a economia, sem fazer apelo a um referencial e a uma medida de referência das trocas, da mesma forma que em qualquer ciência, o referencial considerado e as unidades de medida adoptadas devem ser definidas antes de iniciar o estudo.
Tal como um referencial e as unidades de tempo e distância são necessárias à formulação das leis físicas, nenhum estudo pode ser levado a cabo sem que sejam previamente definidos o quadro de referência da economia e a unidade de medida que lhe está associada.
Referencial : a zona monetária
Uma zona económica ou zona monetária constitui o referencial de base do estudo económico. O que é que a caracteriza?
O espaço no qual o acordo monetário se manifesta.
O tempo, ou seja, a esperança de vida média dos indivíduos que aí vivem e aí morrem.
A produção individual ou colectiva(empresarial) de bens e serviços.
A troca de bens e de serviços entre indivíduos ou grupos de indivíduos.
Os indivíduos ou grupos de indivíduos são inevitavelmente levados a efectuar trocas, que mais não fosse, de informação, de educação, ou em termos ainda mais gerais, de vínculos inter-pessoais. Assim, aquilo que caracteriza a zona económica é o conjunto dos indivíduos que a compõem. A economia existe em todos os lugares e sempre que os indivíduos produzam e troquem bens e serviços. Por contraposição, não é possível definir uma zona económica desprovida de indivíduos. É assim o indivíduo que constitui o único valor comum e fundamental de todos os referencias económicos válidos.
Mas para irmos além destas considerações, temos que notar que este conjunto de indivíduos evolui no tempo, com nascimentos e mortes, emigração e imigração. A zona económica pode assim ser representada como um espaço-tempo discreto em constante criação / destruição, em que cada ponto temporal representa um indivíduo com uma duração de vida limitada. Trata-se assim duma trama espacio-temporal em transformação contínua, não estática, discreta, onde cada ponto do espaço-tempo é criado numa data precisa (nascimento dum indivíduo) e com uma duração de vida limitada, a qual, em média, corresponde à esperança de vida, que denotaremos por «ev» da zona económica considerada.
Além disso, e é a definição fundamental da Relatividade na economia, todos os indivíduos têm uma visão pessoal e única do valor de todas as coisas e nenhum dos indivíduos ou grupos de indivíduos duma qualquer zona económica, tem como impor aos outros uma visão particular do que tem valor e do que não tem.*
Zona económica pseudo-isolada
Uma zona económica é dita ser pseudo-isolada quando, para um certo período de tempo, pode ser assumido que vive de forma autónoma ou quase autónoma em relação ao exterior. Este pode ser o caso das economias de algumas ilhas ainda autónomas, em que a subsistência dos indivíduos é assegurada por uma produção alimentar suficiente (o que é bastante relativo, mas podemos também estudar o caso de certos ascetas), mas também o caso dum grupo topológicamente complexo de indivíduos, repartidos por um espaço não conectado, transnacional, eventualmente transcontinental. A partir do momento em que este grupo exiba autonomia, podemos considerá-lo como uma zona económica pseudo-isolada, capaz de auto-gerir o seu fluxo de produção e de trocas, pelo menos durante um pequeno período de tempo.
Medida de valor: as trocas monetizadas
Quando ocorre troca de bens e ou serviços, falamos de trocas de valor. X troca com Y um valor Vx = Vy = PxCx = PyCy, em que «Px» representa o preço na unidade de medida comum (designada por moeda comum) da produção de X, "Cx".
Now I am become Debt The destructor of worldsBhagavad Gita — Paráfrase da citação de J. Robert Oppenheimer
Este é um livro publicado ao abrigo de uma licença de código Aberto, GNU V3 (cf. 19). À partida parece uma ideia absurda (“. . . código aberto tem a ver com software de computadores. . . ”) e foi assim que a encarei inicialmente.
Acontece que são as ideias absurdas, uma vez levadas à prática, que criam novas realidades. Foi isso que o Stéphane Laborde fez e a afirmação anterior dispensa qualquer demonstração: doutra forma, eu não estaria a escrever estas linhas. De qualquer forma, esta é uma experiência nova para mim e no sentido de orientar o leitor, adoptei como método, restringir as minhas contribuições a este capítulo e à Nota Final, bem como às notas de pé-de-página e finais, visto que o autor original não faz uso das mesmas.
Esta nota prévia tem dois propósitos. O primeiro é o de detalhar o conceito de agregados monetários, assunto que é apresentado de forma algo violenta, logo nas primeiras páginas. O Banco Central Europeu define os agregados M1, M2 e M3, tal como consta da tabela seguinte...(ver Agregados Monetários BCE).
O segundo propósito é o de esclarecer o tema central de todo o livro, isto é, o conceito de valor. Ora, assuntos como este, são propensos a criar uma grande confusão. No fim de contas, a confusão centra-se numa única palavra: lei.
É que existem dois tipos de leis. O primeiro diz respeito às regularidades que podemos observar – ou deduzir – à nossa volta (incluindo em nós próprios). Não dependem da nossa opinião, nem sequer do nosso conhecimento a seu respeito, pois não é pelo facto de alguém desconhecer, e.g., as leis do movimento de Newton, ou as leis do electromagnetismo de Maxwell, que está menos sujeito a elas.
O segundo tipo de leis diz respeito ao conjunto de normativas, formais ou informais (hábitos, tabus sociais) que regulam o funcionamento das nossas sociedades. A diferença essencial, é que as leis do primeiro tipo não dependem de nós, enquanto que as do segundo tipo só dependem de nós.
Karl Popper, [17, capítulo 5 e notas], chamou a esta distinção, a transição dum estado de monismo mágico – característico das sociedades fechadas ou tribais, em que as leis naturais são confundidas com as normativas sociais – para um estado de dualismo ou convencionalismo crítico.
Ao contrário das “leis naturais”, as normativas formais e informais, são apenas decisões, e nenhuma decisão pode ser deduzida a partir de um qualquer facto, ou conjunto de factos. Popper acabou por adoptar a formulação dualista de proposições e propostas. As primeiras podem ser afirmadas (ou declaradas); podem ser verdadeiras ou falsas, e só os terminalmente tolos as confundirão com o facto da sua declaração. As propostas são adoptáveis e, como resultado duma decisão individual ou colectiva, podem ser adoptadas; de novo, o facto da sua adopção não pode ser confundido com o facto que a proposta é. Concluindo: “. . . as propostas não são redutíveis a factos . . . embora lhes digam respeito”.
Esta distinção é essencial. Confronta-nos com a nossa própria liberdade, mas também com a nossa responsabilidade. Hoje em dia, neste continente mais uma vez mártir, e, por maioria de razão nos países como o meu, que se encontram na linha da frente da mais recente ofensiva contra a liberdade, os adoradores de Shiva dizem-nos que não existem alternativas àquilo que apenas são as suas próprias propostas*. Esquecem que, em última análise, existe sempre pelo menos mais uma: a alternativa de Oppenheimer. Pela sua insistência no que, por vezes, parece genuinamente ser apenas a ausência da faculdade de pensamento competente, o tribalismo mágico dos dívidocratas está apenas a tornar a violência mais provável.
Penso que é muito difícil elaborar uma ideia mais antropomórfica do que a contida na palavra “valor”. Mas também será difícil encontrar alguma outra ideia que, com tanta frequência, tenha sido sujeita a distorções monistas. Iremos apenas – e de forma muito breve – analisar duas, que designarei por “naturalismo mágico” e “positivismo totalitário”.
A “teoria do valor” de Marx (ou talvez, pelo testemunho de Engels, de David Ricardo), afirma o carácter objectivo do valor, definido como o número de horas de trabalho, socialmente necessárias, para produzir uma unidade de um qualquer bem ou serviço. O núcleo da afirmação, de que apenas a actividade humana gera valor é verdadeiro. Trivial e banalmente verdadeiro, pelo seu carácter antropocêntrico. Acontece apenas que Marx (e os outros naturalistas) esqueceram que trabalho é, em última análise trabalho físico e que este tem dimensões de energia. Logo, o “valor de troca” de Marx teria as dimensões [W] = ML2T-1, em vez das habituais [W] = ML2T-2. †
Pode-se objectar à minha crítica, afirmando que o assunto não tem a dignidade suficiente para uma análise detalhada. Veja-se que, se aceitássemos aquela noção de “valor de troca”, teríamos que concluir que, sendo o trabalho socialmente necessário para produzir uma tonelada de ouro de lei e uma tonelada de ouro dos tolos igual, então o seu valor seria igual. Creio que foi A.J. Toynbee quem afirmou que “. . . a liberdade foi muitas vezes vítima de ataques directos, mas com mais frequência ainda, vítima de falsas ideias”. E de falsos profetas, acrescentaria eu.
A postura dos positivistas (em boa medida, a posição hoje dominante) é ainda mais brutal, pois sendo que só os factos têm significado, apenas a situação real tem significado, sendo todas as alternativas meras “construções verbais”. Creio ser óbvio que se trata apenas da defesa, pretensamente erudita, do status quo, nada mais necessitando ser dito.
A Teoria Relativista do Dinheiro afirma a condição do indivíduo como único decisor válido do valor. Pelo que atrás ficou dito, penso ser claro que podemos defender esta afirmação como quisermos, mas em última análise nunca a poderemos deduzir de um qualquer conjunto de factos ou proposições, temos que a propor. E pugnar pela sua adopção:‡
Princípio do Valor 0.1 O indivíduo é o único decisor válido do valor e a sua liberdade só pode ser restringida na medida em que conflitue com a liberdade de outros indivíduos, incluindo os que ainda não nasceram.
É razoável pensar que a paráfrase inicial é excessiva, no fim de contas, Oppenheimer estava a falar da arma atómica, a arma final. A História, aqui no sentido preciso de “história registada”, mostra-nos que, pelo contrário, talvez a citação original fosse exagerada. No fim de contas, podemos afirmar com uma certeza razoável que a ameaça nuclear é controlável. A destruição pela dívida não. Isto porque a criação monetária por privados, implica sempre uma dívida: o dinheiro tem que ser «. . . borrowed into existence . . . ».§
O resultado são os ciclos periódicos de “abundância de dinheiro barato”, seguidos de ciclos de destruição (!) monetária, sempre acompanhados pela devastação do tecido económico e social. Pelo sofrimento. Foi por isso, [6, por exemplo], que todas as sociedades e todas as religiões do Levante instituíram jubileus periódicos da dívida; um novo começo, uma nova oportunidade, como uma tela em branco. No presente, a única dúvida é até quando iremos tolerar a repetição ad nauseam das transfigurações de Shiva. Porque, metáfora à parte, dependem apenas de nós.
“Assim, resta-nos enfrentar lucidamente a questão, por muito difícil que nos pareça. Se sonharmos com um regresso à infância, se nos deixarmos cair na tentação de delegar nos outros aquilo que nos compete para encontrar a felicidade, se nos furtarmos à incumbência de carregar a cruz que nos pertence, a cruz da humanidade, se nos falhar a coragem e abandonarmos a luta, então teremos que tentar fortalecer-nos na compreensão clara e simples da decisão tomada: o regresso à bestialidade. Pois o caminho da humanidade é só um, o da sociedade aberta, e implica um salto no desconhecido, na incerteza, na insegurança, implica recorrer à razão como meio de planear, o melhor que soubermos, a nossa segurança e a nossa liberdade.”[17, Popper, op. cit.].
Podereis roubar-me tudo: As ideias, as palavras, as imagens, E também as metáforas, os temas, os motivos, Os símbolos, e a primazia Nas dores sofridas de uma língua nova, No entendimento de outros, na coragem De combater, julgar, de penetrar Em recessos de amor para que sois castrados. E podereis depois não me citar, Suprimir-me, ignorar-me, aclamar até Outros ladrões mais felizes. Não importa nada: que o castigo Será terrível. Não só quando Vossos netos não souberem já quem sois Terão de me saber melhor ainda Do que fingis que não sabeis, Como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais, Reverterá para o meu nome. E mesmo será meu, Tido por meu, contado como meu, Até mesmo aquele pouco e miserável Que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito. Nada tereis, mas nada: nem os ossos, Que um vosso esqueleto há-de ser buscado, para passar por meu, E para outros ladrões, iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo. Jorge de Sena — in Metamorfoses: Camões dirige-se aos seus contemporâneos
Excelência,
Graças ao Observatório Naval da Armada Americana, consegui em dois ou três minutos calcular o tempo decorrido desde a última vez em que tinha tido vergonha de ser português, até à mais recente, desencadeada pela televisiva emoção de V. Exa. na tarde do passado domingo, 5 de Janeiro de 2014. Foram muito aproximadamente 14500,541667 dias, desde "...aquela madrugada clara e límpida" de Abril; nem todos bons, mas durante os quais eu me podia afirmar cidadão deste país sem sem que a vergonha me fizesse corar.
Neste momento, enquanto dura o sortilégio daqueles cerca de metade de um por cento de portugueses que encheram todos os ecrans de todas as televisões (mais ou menos a mesma percentagem de alemães que inundaram as Noites Mágicas de Nuremberga) e as primeiras páginas de todos os jornais que dentro em breve irão embrulhar postas de bacalhau (obrigado, Rui), lido com o meu nojo à minha maneira, mas não quero maçar V. Excelência com assunto tão pessoal, porque a verdade, talvez incómoda para si, é que ainda existem pessoas de bem neste país.
O propósito desta Petição é directo e explícito. Parece que o fulano do pontapé na bola irá ser transladado para o Panteão. Irá fazer companhia àquele esqueleto falso de que falou Jorge de Sena, sem com isso incomodar minimamente o falsificado, que toda a vida conviveu com ralé. Por isso, solicito a V. Exa duas coisas: a primeira é que, com a brevidade possível, diligencie para que o esqueleto, esse bem real, do patrono mais recente de todos aqueles ladrões seja também transladado para o Panteão. Sem a companhia do emérito Prof. Dr., o de Santa Comba, nem o Futebol nem o Fado poderão descansar em paz, sendo que o 'F'-em-falta se consagra a si próprio.
O segundo pedido é no sentido de V. Exa. envidar todos os esforços para lhes ir fazer companhia com a maior brevidade possível. Tendo sido informado pela loiríssima Figura do Estado que lhe sucede na Ordem da República, de que estas coisas têm custos, desde já me comprometo publicamente a contribuir para esse peditório. E aqui deixo a evocação de dois outros Portugueses, cuja simples memória poderá contribuir para acelerar tão fausto desenlace.